A rapper e escritora Capicua está de regresso à literatura infantil com 'Como é que um caracol foge de casa?', ilustrado por Matilde Horta e editado pela Nuvem de Letras.
Longe da ingenuidade que se pode atribuir às fábulas, a obra utiliza a insólita viagem de um caracol farto da sua 'casa' para pôr o dedo na ferida de um dos problemas mais urgentes (e emergentes) da sociedade portuguesa: a crise da habitação.
Mas Ana Matos Fernandes, mais conhecida pelo monónimo Capicua, traz-nos ainda mais 'lições' neste que é o seu segundo livro infantil, depois de, em 2023, ter lançado 'Cor-de-Margarida'.
'Como é que um caracol foge de casa?' convida-nos a refletir sobre empatia, desiguldades, independência e privilégios porque, tal como realça a artista em entrevista ao Notícias ao Minuto, "os livros são grandes estímulos à conversa, sobretudo com as crianças".
"Eu gosto sempre de falar sobre coisas importantes pelo atalho da música, da poesia ou da literatura. Neste caso, e porque acho que os livros são grandes estímulos à conversa, sobretudo com as crianças, quis tocar em temas que são de grande urgência e atualidade, de uma forma engraçada e irónica, para convidar as famílias a falar a respeito. Acho que falar sobre a noção de privilégio próprio num mundo tão desigual e sobre o acesso à habitação, num contexto como o nosso, é mesmo importante, sobretudo para criar cidadãos mais solidários e empáticos", revela.
O protagonista do conto, como o título do livro deixa a descoberto, é um caracol, que está cansado de andar com a casa às costas. A certa altura, o molusco parte rumo a umas férias junto ao mar, para visitar os primos caramujos. Pelo caminho vai-se cruzando com outros animais com dificuldade em conseguirem uma casa, seja um ninho, uma toca, uma teia.
O seu lamento e lentidão contrastam com o turbilhão da vida dos outros animais com quem tenta conversar. O caracol descobre assim que nem todos têm a sorte de ter uma casa própria. Toupeiras, pássaros e outros bichos andam atarefados, a lutar para garantir um direito básico – o de ter um lar.
Tal como em 'Cor-de-Margarida', Capicua não infantiliza o público mais novo em 'Como é que um caracol foge de casa?'. A receita para prender-lhes a atenção e para os despertar para temas tão importantes como os que este livro aborda é usar a ironia e o humor, como já nos habituou nas suas canções.
"Eu divirto-me muito a escrever e acho que isso se nota, mas acho também que a ironia e o humor são ingredientes estratégicos para que os temas mais sérios e importantes sejam abordados e absorvidos sem resistências ou desconfianças. Acho que ir pela gargalhada (como pela música ou pela poesia), faz com que as pessoas (de todas as idades) estejam mais disponíveis a escutar e a conversar sobre um tema", salienta ao Notícias ao Minuto.
Apesar da riqueza da linguagem, repleta de interjeições, expressões curiosas e vocabulário menos frequente, o livro é recomendado para crianças a partir dos três anos, ou seja, promove o diálogo entre os mais novos e os adultos.
O desfecho da história traz uma grande lição ao caracol que, confrontado com a realidade alheia, acaba por perceber que, afinal, é um afortunado por ter uma casa só para ele, mesmo que a tenha de levar para todo o lado.
'Como é que um caracol foge de casa?' é, portanto, mais do que uma história para adormecer. É um convite à reflexão sobre a urgência de ter onde morar e um valioso megafone que Capicua direciona às famílias e à sociedade.
"Devo muito à literatura infantil"
Ana Matos Fernandes é natural do Porto e formada em Sociologia. Desde os 15 anos que escreve, mas foi nos anos 2000 que se lançou como "aprendiz de rapper".
Nas últimas duas décadas e meia construiu um percurso sólido no panorama da música lusófona. Canções muitas vezes desenhadas a partir de uma crítica audaz e aguçada, que transporta para as suas crónicas e até livros infantis.
Tal como já tinha revelado numa grande entrevista dada no passado mês de março ao Notícias ao Minuto, na sequência do lançamento do álbum 'Um Gelado Antes do Fim do Mundo', Capicua lembra-se de "gostar de palavras antes de saber escrever", por isso, os livros que o pai lhe lia, assim como as lengalengas que lhe ensinava, serviram também de inspiração a escrever para crianças.
"Devo muito à literatura infantil, às canções da infância, às lengalengas, porque foi em criança que começou o meu fascínio pelas palavras e, até hoje, mantenho uma relação lúdica com elas", nota, acrescentando que, o facto de ter sido mãe e de ter voltado "a ler muitos mais livros infantis, porque o faz para o filho, também a tem conduzido a escrever para os mais novos.
Questionada sobre novos trabalhos, Capicua confidencia que já tem mais um projeto em mãos.
"Estamos a fazer mais um disco-livro do projeto Mão Verde (a minha banda de música para a infância, com Pedro Geraldes, António Serginho e Francisca Cortesão), para sair na primavera e estamos com muita vontade de continuar a falar sobre ecologia, como nos discos anteriores, mas também sobre igualdade, habitação, cidade, democracia e liberdade", conclui.
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