'A Última Lição de José Gil' é o mais recente livro da jornalista e escritora Marta Pais Oliveira. Desta vez, a autora decidiu oferecer aos leitores uma 'viagem' completamente diferente. Traz-nos uma espécie de biografia de José Gil, um dos maiores filósofos e pensadores de Portugal.
Numa espécie de grande entrevista, realizada semanalmente, ao longo de seis meses, Marta e José Gil conversaram sobre o Passado, Presente e Futuro, o Espaço, o Tempo e o Desejo, e Moçambique, França e Portugal.
As 'lições' retiradas desta densa conversa são muitas, mas estão longe de serem as últimas que José Gil tem para ensinar. Como lembrou a escritora, esta é uma coleção da Contraponto que "alude à aula de jubilação de um professor universitário, dando espaço às ideias de grandes pensadores portugueses a quem reconhecemos o valor de professor, na maior amplitude e força da palavra".
José Gil, de 86 anos, "continua a escrever e a publicar e os seus textos seguem muito vivos".
Admiro os seus textos. É um extraordinário filósofo com quem temos muito a aprender
'A Última Lição de José Gil' é uma espécie de grande entrevista ao pensador e professor José Gil. Como surgiu esta ideia? É um livro completamente diferente dos que já nos tinha habituado...
É o primeiro livro que publico de não-ficção. A ideia surge de um desvio. Tinha conversado com o editor Rui Couceiro sobre a possibilidade de escrever uma biografia de uma poetisa, e iniciei um doutoramento para estudar a obra de quem iria biografar. A certo momento, percebi que o caminho não era por ali. Interrompi o doutoramento e propus ao Rui escrever 'A Última Lição'. Nesse primeiro ano de estudos interartísticos em que cruzei literatura, arquitetura e dança, estava a ler muitos textos de José Gil sobre o corpo no espaço. Já tinha lido o fenómeno 'Portugal Hoje: O Medo de Existir', e tinha muita vontade de lê-lo mais. Admiro os seus textos. É um extraordinário filósofo com quem temos muito a aprender, fiquei muito feliz quando aceitou prontamente conversar tão longas horas e partilhar reflexões sobre a sua vida e obra. Sou formada em jornalismo, entusiasma-me conversar com quem nos instiga a pensar melhor. Ainda bem que a rota mudou para abrir este encontro que me transformou e que estou certa de que transformará os leitores.
Porque decidiram dividir o livro em três momentos (Espaço, Tempo e Desejo)?
Depois das primeiras horas de conversa – a entrevista manteve-se ao longo de seis meses, entre outubro de 2024 e março de 2025, com um encontro semanal –, esbocei o índice que conduziria o leitor. Como é que os espaços que atravessamos constroem a nossa identidade? Que tempos são estes que atravessamos hoje? O Espaço e o Tempo são como que molduras invisíveis da nossa ação, ou modos de organização da experiência humana. São as duas grandes condicionantes ou ordens de grandeza a que estamos sujeitos. O poema, a música, qualquer forma de arte liberta-nos disso que nos subjuga, estilhaçam os limites. Aí entra a potência do Desejo, essa força de deslocamento que parte do corpo, uma força vital. É esse desejo que nos move e que instiga a nossa criatividade. A potência de criação existe em cada um de nós. Esta organização triádica cruza a biografia com as grandes linhas de pensamento de José Gil.
Além de ser uma lição, este livro é também uma viagem. A primeira parte traça três espacialidades: Moçambique, França e Portugal. Porquê?
É uma viagem cheia de pulsão e de vivacidade, cheia de surpresas e paixões. Vivificante. Com essa vivacidade tão própria que José Gil tem e que diria que faz parte da sua singularidade, esse contínuo entusiasmo. O primeiro capítulo é muito biográfico e parte das geografias que moldam profundamente José Gil: Moçambique, onde nasceu, numa povoação no mato do Niassa; Paris, onde estudou e viveu a revolução do Maio de 68, a Córsega e o seu apelo independentista; e Portugal, onde se fixará depois do 25 de Abril e onde embaterá numa atmosfera de silenciamento que chega aos dias de hoje, com ecos salazaristas, com um espaço público carcomido. Começamos pelo Espaço que é contínua inquietação no trabalho de José Gil. Lançadas essas raízes – ou, descobriremos, a sua fratura, não se vendo como retornado ou estrangeirado – conseguiremos entender como desenvolveu o seu pensamento filosófico. Alimentou-se do movimento. O leitor tem acesso a episódios muito únicos: José Gil quase foi capturado por uma seita, conduziu ambulâncias numa clínica psiquiátrica, a certo momento fartou-se do que ouvia na Sorbonne e vendeu a sua biblioteca, escreveu ficção e teatro antes de ver a sua língua materna implodir, frequentou os cursos de Deleuze e voltou a apaixonar-se pela filosofia.
Como revelou nas suas redes sociais, a segunda parte incide em temporalidades em torno da democracia e dos populismos, do digital e da ecologia, meditando sobre o medo, a morte e a liberdade. Como é que estes temas estão interligados?
Pareceu-me muito importante interpretar os dias de hoje. Vivemos tempos muito inquietantes de ameaças e retrocessos, a dignidade corroída. Enquanto conversei com José Gil, Trump voltou ao poder, prometeu construir em Gaza a Riviera do Médio Oriente, em Portugal – bem como na Europa – a extrema-direita continuou a crescer, tivemos eventos extremos ambientais, como as inundações em Valência ou os incêndios em Los Angeles.
José Gil traça três grandes crises: a ascensão da extrema-direita, o descontrolo da Inteligência Artificial, a favor de forças de morte e não de vida, e o flagelo climático. O que significa a possibilidade de uma extinção da espécie?
Avisa-nos que a democracia, no nosso país, é um ideal ainda por cumprir, mostra como Portugal é uma sociedade desigualitária, corrupta, violenta – veja-se os crimes de violência doméstica contra mulheres –, nota como nos falta uma escala de valores para aferir o que é importante e o que não é. Aponta o poder distanciado da cultura popular, um renegar que fizemos das nossas raízes. E esse medo perpétuo que não nos deixa afirmar quem somos, medo que é o maior entrave à liberdade. José Gil dedica a sua vida ao estudo do infra-verbal, ao que a palavra não capta. Também às zonas de transição entre indivíduo e coletivo. Entramos no incodificável, no corpo como instrumento de poder, dá-nos pistas para pensar melhor. É também um livro muito honesto sobre o envelhecimento, sobre a morte e como ela pode intensificar a vida.
E como surge o Desejo? Que temas abordam neste momento?
A psicanálise (Freud, Lacan) diz que o desejo parte de uma falta, da carência, nunca se satisfaz. Já uma perspetiva filosófica (aqui José Gil continua o pensamento de Deleuze, a sua grande influência) revela o desejo como potência criadora, fluxo que inventa realidades. É sobre esse Desejo que meditaremos, partindo de três corpos que fogem a codificações e que vivem a imanência contra pulsões opressoras: primitivos, crianças e artistas. Em comum têm a capacidade de se transformarem. José Gil falará de uma capacidade de devir, de ser muitos. Neste livro mostra-nos possibilidades de vidas mais livres e dignas, medita sobre o poder da linguagem, partilha a sua paixão pela literatura, em especial Fernando Pessoa, pela pintura e pela dança. São espaços de oxigénio na entrevista. Penso que o livro apresenta ideias fundas sem linguagem obscura ou árida, é uma leitura muito prazerosa. Vários leitores têm partilhado essa sensação mágica de irem muito fundo através das reflexões de José Gil, mantendo uma surpreendente leveza. Só um grande professor tem esse dom.
Uma das reflexões da 'Última Lição' é sobre o passado colonial do país...
Sim, José Gil reflete sobre a violência colonial em Quelimane e Lourenço Marques, onde cresceu. E mostra a dupla repressão perversa – tirar a terra da comunidade negra, negar-lhe tudo, roubar-lhe a vida, impor-lhe uma religião. Como filho de colonos, partilha a experiência de viver artificialmente, de aprender na escola as canções dos campos e dos rios portugueses, não ter palavras para nomear a vasta extensão africana que o rodeia, de lhe tentarem incutir um sentimento de superioridade desde muito novo a que nunca cede. E os ecos coloniais alastram-se, o trauma foi silenciado durante muito tempo.
Sem memória, nenhum futuro. Lembrar é, também, uma forma de lutar
Apesar do título do livro ser ‘A Última Lição de José Gil’, esta não é a sua última lição, uma vez que este continua com os seus pensamentos e até a 'desenhar' futuros livros. Então, porquê 'última' lição?
O título é da coleção da Contraponto que alude à aula de jubilação de um professor universitário, dando espaço às ideias de grandes pensadores portugueses a quem reconhecemos o valor de professor, na maior amplitude e força da palavra. O aviso à navegação é dado longo no arranque do livro: esta não é a última lição, José Gil continua a escrever e a publicar e os seus textos seguem muito vivos. Gostaria muito que este livro levasse mais leitores à sua obra vibrante.
Perante o que vivemos hoje em dia – crescimento da extrema direita, genocídios, guerras – , que importância têm livros como este, que falam não só do futuro, mas também do presente e do passado?
Tentei que o livro fosse tão amplo quanto possível. Para pensar as inquietações de hoje temos de analisar marcos importantes da nossa história que nos trouxeram até aqui. Sem memória, nenhum futuro. Lembrar é, também, uma forma de lutar. Depois de tantas conquistas, não podemos ter má memória e aceitar o alastrar da barbárie. Avançar sem freio e sem ética é também uma forma de inércia. José Gil parte dos comportamentos quotidianos: o que é que se passa na nossa perceção comum das coisas, na relação interpessoal? Vai daí à escala maior. É uma filosofia que diz respeito à nossa vida, ao que nos dignifica ou não, ao que nos liberta ou oprime. Creio na importância deste testemunho de alguém que é sábio e livre e que atravessou períodos muito díspares, mantendo sempre a sua aguda lucidez.
José Gil diz-nos com limpidez: os totalitarismos não suportam o afeto. E aponta três formas de resistência: amor, humor e arte
Porque defende que "pensar para lá do medo, das ilusões, opressões e manipulações ainda é dos mais fortes gestos de resistência"?
Exatamente porque vivemos estes tempos de absurda manipulação. De que nos adianta correr muito se corremos na direção errada atropelando tudo e todos, e matando-nos nesse ritmo desenfreado? É também necessário resgatar as palavras como compromissos de honestidade, não artifícios de distorção. O que chamamos de realidade é moldada pela própria linguagem. Houve conversas em que falámos muito das ameaças, do que nos pode aniquilar. Vim a pensar nas possibilidades que estamos a entregar a quem é hoje criança e a quem ainda não nasceu. No caminho de regresso ao Porto, via faixas alaranjadas no céu, entardecia, uma certa serenidade e encanto. A total dissonância. Algo como: o carro vai em contramão, vai embater e não soubemos defender a beleza. Pensar é o gesto que nos pode devolver uma ideia de humanidade e um planeta habitável.
Pois, este livro instiga mesmo o leitor a pensar e a refletir. Qual a principal lição que quer passar a quem vos lê?
Um livro potente é um gatilho de ação. O que pode a filosofia em tempos de doente aceleração? Cada leitor encontrará ângulos que o iluminam com maior intensidade. Ler José Gil é resistir à distração e à falta de profundidade. A nossa atenção é preciosa, temos de usá-la bem. O que fazemos hoje está a abrir ou a fechar futuros possíveis, essa responsabilidade pede-nos muita atenção, curiosidade pelo outro. O outro que somos nós, a capacidade de nos outrarmos é das maiores forças que podemos ter. José Gil diz-nos neste livro, com a sua clareza e força, que uma conversa é a permanente abertura da diferença. Seria bom reaprender a arte da conversa contra o medo, o ódio, o erguer de muros. Mostra-nos como a filosofia se liga ao nosso quotidiano. Não é uma abstração, é um laço com a vida, é um olhar sobre o que nos liberta ou oprime. A filosofia pergunta para transformar problemas, extrai do caos conceitos e modos de ver. É um exercício de espanto, curiosidade, inquietação. Para combater o medo que tudo corrói e criar novas configurações, este livro aponta-nos uma ética do afeto. José Gil diz-nos com limpidez: os totalitarismos não suportam o afeto. E aponta três formas de resistência: amor, humor e arte. Podemos ser melhores, temos de ser melhores. E essa consciência é o que nos faz avançar.
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