"Sou um homem honesto. Enquanto músico eu sou honesto. Isto não é uma auto-bajulação, não é um auto-elogio, é uma constatação", assim se apresenta Luís Represas. O cantor esteve à conversa com o Notícias ao Minuto dias antes de subir ao palco da 10.ª edição do Festival F, em Faro, hoje, dia 4 de setembro.
E o que é isto de ser honesto na música? "É fazer aquilo que a nossa alma, que o nosso estado enquanto compositor nos diz para fazer. É aí que transmitimos as nossas emoções, as nossas preocupações, as nossas experiências, a nossa maneira de ver o mundo, a vida e as pessoas, e assim sermos honestos."
Na verdade, Luís Represas dispensa apresentações, pois já são praticamente 50 anos na indústria musical. Foi nos anos 70 que deu os primeiros passos como membro da banda Trovante, tendo sido nos anos 90 a 'revelação' enquanto artista a solo.
Aos 68 anos, Luís Represas continua a desfrutar do prazer que é subir ao palco e atuar para o seu público, como vai acontecer esta quinta-feira, 4 de setembro. E o que esperar deste concerto? Não vão faltar temas do mais recente álbum, 'Miragem', lançado no ano passado, mas o foco não será este disco, pois não podem faltar temas de sucesso que marcam a sua carreira.
"Hoje em dia os tempos são diferentes", comentou. "Claro que o meu 'Miragem' será tocado, mas nestes festivais há que levar às pessoas muito daquilo que querem e gostam de ouvir. Ponho-me na ótica do consumidor também. Se for a um concerto de alguém no âmbito de um festival em que o artista não passa as canções que, para mim, são aquelas que me trazem as referências e que me ligam a ele, fico um bocado para o chateado", argumentou, explicando assim que o espetáculo vai contar com um pouco de 'tudo'.
"Vão passar canções maioritariamente minhas, que têm a ver com o meu histórico, mas também canções que vão mais atrás com algum reportório dos Trovante, que nunca deixei de tocar", acrescentou.
Cartaz Festival F© Festival F
Mas, afinal, quais são as músicas que nunca faltam num concerto de Luís Represas?
São aquelas que as pessoas quase que não admitiam não ouvir. Por exemplo, a 'Feiticeira', 'Da Próxima Vez', 'A Hora do Lobo', no caso dos Trovante a 'Perdidamente'… Todas as que são mais conhecidas porque, de facto, um disco com 13 músicas, por exemplo, é normalmente reduzido a uma, duas e com muita sorte três. A não ser os ouvintes fiéis que gostam de comprar o disco e conhecê-lo de cima a baixo, mas isso é uma fatia pequena em relação ao grande público que está espalhado pelo país inteiro.
Portanto, esses sim, são mais sensíveis àquelas que foram trazidas a público pelos meios de comunicação, nomeadamente o mais óbvio que é a rádio. Que eu penso que hoje em dia com os Spotify todos da vida não é substituível, porque nas plataformas optamos por ouvir o que queremos e muitas vezes esquecemo-nos do que lá está.
Sente que a rádio continua a ter um papel fundamental na música?
Com certeza! Tem esse papel de levar às pessoas não por sua própria escolha. Utilizando-me a mim como exemplo, se faço um disco novo como este último, 'Miragem', se as rádios não passarem as músicas desse álbum, ou as pessoas têm como propósito e opção ir ouvir e vão a uma plataforma, ou se não o fizerem e se passar na rádio posso ouvir lá. Isto é comum a todos nós, é transversal a todos os artistas
Quando vamos ver músicos e artistas da minha geração, e até um bocadinho mais novos, de repente começamos a perceber que as músicas que as pessoas querem e gostam de ouvir nos concertos são as antigas. Porque foram aquelas que tiveram uma dose de divulgação grande, que foram transformadas em hits.
Ao fim destes 50 anos, continuo a encarar um concerto e uma subida ao palco como qualquer coisa da maior responsabilidade, mas por outro lado uma coisa que me dá o maior prazer. O que gosto de fazer é estar no palco
Isso acaba por ser um gesto de carinho para um artista, o recordar o seu reportório?
Sem esse repertório não éramos nada. Crescemos e chegámos até aqui ao fim destes anos todos por causa disso, do que fomos fazendo e daquilo que as pessoas foram conhecendo e reconhecendo.
No que diz respeito aos concertos, comparando com no seu início no mundo da música nos anos 70, por exemplo, com os Trovante, acredito que a preparação ou até mesmo a forma como vive os concertos hoje em dia seja diferente?
Sim, é muito diferente. No que diz respeito à produção, à logística e a tudo isso, é muito, muito diferente. Agora, do ponto de vista artístico, para mim, é exatamente igual. Ao fim destes 50 anos de trabalho, continuo a encarar um concerto e uma subida ao palco - seja no Festival F, seja no Pavilhão Atlântico ou no estrangeiro - como qualquer coisa da maior responsabilidade, mas por outro lado uma coisa que me dá o maior prazer. O que gosto de fazer é estar no palco.
Este intervalo foi particularmente 'sui generis' porque tivemos a pandemia, que teve um papel tão estranho quanto ela é estranha. Houve gente que gostou imenso da pandemia. Eu não
No fundo é no palco que têm o devido resultado para aquilo que trabalharam…?
É o objetivo final, quando subimos ao palco. Quando as pessoas me perguntam se estou cansado ao fim destes anos todos a fazer espetáculos, digo antes pelo contrário. Se não fizermos isto estamos a demitir-nos e a reconhecer que estamos fartos daquilo que optámos fazer na vida, e que gostamos de fazer.
Um artista, um músico é até ao fim da vida. Nós não decretamos reforma. Quem encara isto de alma e coração é até ao fim - se tivermos forças para isso e é isso que se pretende também.
Este último álbum, 'Miragem', chegou cerca de seis anos depois do 'Boa Hora', de 2018. Não é a primeira vez que faz uma pausa entre álbuns, apesar de esta ter sido mais longa. Às vezes é preciso respirar entre discos?
Este intervalo foi particularmente 'sui generis' porque tivemos a pandemia, que teve um papel tão estranho quanto ela é estranha. Foi estranha e inesperada. Houve gente que gostou imenso da pandemia, que fartou-se de escrever, de compor... Eu não. O facto de ter de estar em casa, de me isolar das pessoas... O que me faz compor e escrever é a vida a acontecer, ver e conhecer pessoas, alimentar-me do que é a sociedade...
Compus este disco num ano, praticamente, depois foi todo o processo de produção. Entre composição e produção foram cerca de dois anos. A pandemia trouxe aqui uma dose de atraso que, se calhar, até fez bem. Termos um espaço que muitas vezes não nos damos ao trabalho de nos autoimpor. Aqui foi imposto. Mas depois quando comecei a trabalhar e a reunir reportório, comecei a fazê-lo com a maior das alegrias. É isso que também nos move.
O que nos traz este 'Miragem', ou seja, quem é hoje o Luís Represas enquanto músico e tendo em conta estes 50 anos de carreira?
Sempre gostei muito de contar com o contributo dos músicos, dos arranjadores. Neste caso, no 'Miragem', saí do âmbito normal, que é trabalhar com os músicos que trabalham comigo nos concertos e que tocam comigo no dia a dia. Optei por ir ter com o Ricardo Leão, que é o autor da música 'Miragem', que fizemos há cerca de dez anos no Brasil. Em conversa, decidimos que ele iria ser o produtor e arranjador deste disco - ele no Brasil com os seus músicos, com o seu hardware e no seu ambiente natural, pegou nas canções que lhe mandei completamente nuas e despidas, só com guitarra, voz, letras e algumas ideias/referências porque caminho é que gostava que seguissem, e trabalhou assim. Trabalhámos com um oceano de distância, mas com a facilidade de comunicação que hoje em dia temos.
Por um lado, fiz aquilo que gosto de fazer que é experimentar e tocar com outros músicos, experimentar outras cabeças, abordagens, e dar muita liberdade à forma como esses músicos se podem exprimir. Isto acontece comigo também no palco. Por outro lado, algum afastamento que até agora nunca tinha existido em relação à produção do próprio disco. Nunca estive com o Ricardo Leão em estúdio um único dia a não ser há 12 anos, quando gravámos a maquete da 'Miragem'.
Abre a porta para outros 'mundos'…
Esta liberdade de trabalhar na música, para mim, é fundamental. E sempre foi. Aliás, o meu primeiro disco a solo, em 93, foi gravado em Havana com o Miguel Núñez, com músicos cubanos e só um músico português. Sempre gostei imenso de explorar esse lado e aproveitá-lo. Sempre me enriqueceu.
Comparar o Luís de agora com o de 1976 é mais difícil porque era membro de um coletivo, os Trovante. Comparando com a parte a solo que começa em 92/93 com o primeiro disco até agora, há um amadurecimento, mas não quer dizer que a fruta fique mais mole. Tem a ver muito mais com o não rejeitar, muitas vezes, por preconceito ou por pensar mais pela cabeça dos outros do que pela minha, e a isso também se chama insegurança. Venha o primeiro músico dizer que não é inseguro. Todos são inseguros, mas uns têm uma capa maior e outros têm uma mais pequenina.
Sou o mesmo, mas fui aprendendo comigo próprio. Faria as coisas todas da maneira como fiz até hoje. Alterando um bocadinho aqui e ali, mas faria da mesma forma.
Mas sente que ao fim de 50 anos de carreira encara o mundo da música, talvez, com outra leveza? O fazer novas músicas, apresentá-las, subir aos palcos… Hoje em dia vive isso de uma maneira diferente e, talvez, mais leve?
Não, porque nunca vivi isso de uma maneira pesada.
Questiono no sentido de que estes anos todos de carreira possam ter-lhe dado outra confiança, uma outra posição?
Não, continua a ser a mesma. A palavra confiança ou autoconfiança pode ter várias matrizes. Talvez no princípio fosse mais difícil de controlar essa confiança, e durava mesmo até à entrada no palco ou até à primeira opinião sobre o disco cá fora. Há uma diferença grande em relação ao mundo da música nesta altura. Antigamente um disco saía e era alvo de muitas opiniões.
Também o próprio mundo da música mudou, exato…
Claro! Quando o disco saía estávamos à espera das críticas, o é que se dizia, as rádios… Hoje em dia não.
Mesmo quanto aos meios de divulgação agora há muitos mais, como falou há pouco do Spotify e até mesmo as redes sociais ou o YouTube…
Há mais montras, mas estão mal sinalizadas. Se entrar num supermercado e vejo uma data de montras sem nenhuma indicação e se estiver tudo misturado - as batatas misturadas com os shampoos ou o vinho -, de repente, vejo aquilo e não sei o que fazer. Ou sei muito bem o que quero e vou procurar no meio daquilo tudo, outra coisa é termos a montra sinalizada.
A internet tem pouca cola. Há muita divulgação, mas o que é que as pessoas retêm, de facto, dessa divulgação?
Hoje em dia é muito mais fácil conseguir levar música às pessoas e, por isso, há mais escolha?
Penso que é mais fácil construir públicos-alvo do que propriamente disseminar a música que se faz para um público vasto e eclético, que pode agarrar a minha música da mesma maneira que agarra a música de outro qualquer. Esta mobilidade. Essa história das montras, da misturada que existe, faz com que as pessoas vão buscar só uma coisa e, se calhar, não olham para o lado e nem percebem que tem outras.
Daí o papel da rádio que continua a mostrar várias músicas?
Se assim o fizerem. Se as rádios também estreitarem a sua oferta acabam por tornar 'públicos-foco'. Todos os que estamos cá há mais anos e assistimos a toda esta transformarão, ainda estamos a processar e vamos continuar a processar. Tenho quatro filhos, o mais novo com 22 anos e o mais velho com 33, e costumo dizer-lhes que às vezes aquilo que eles encaram como incapacidade nossa de podermos ter agilidade no meio de toda a informação que existe hoje em dia, e que para eles é aquela onde nasceram, nós tivemos que perceber como é que se trabalha com um leitor de cassetes, perceber que o homem foi à lua, depois perceber como é que funcionava o primeiro computador ou a primeira máquina de calcular – que afinal de contas já funciona a pilhas e não a manivela…
Tivemos que aprender isso tudo e temos muitas vezes, sinto por mim, esse desconforto em conseguir levar a cabo o resultado do esforço que temos que fazer para estar a par das coisas e conseguir conviver com as elas. É muito bom e bonito, mas temos de ter essa noção porque senão estamos a pensar que somos mais do que aquilo que somos… e não somos. Não somos super-homens, nem super-mulheres.
Uma vez que acompanhou toda esta evolução e teve de se adaptar, sente alguma dificuldade?
Não, não lhe chamaria dificuldade. A diferença aqui é o acomodamento às circunstâncias atuais. Porque - e aí também vamos ver com alguma frieza - não há ninguém que saiba a lição, que seja o dono da verdade. Toda a gente está a aprender e a querer, de alguma forma, ter o seu lugar ao sol, não só o seu próprio mas também do músico que representa. Não há uma verdade quase absoluta como aquela que houve durante anos.
Essa é uma grande questão. Quando pensamos em como é que vamos divulgar certa coisa, como é que fazemos para chegar a mais gente, há milhares de opiniões mas que são emanadas de uma falta de exatidão, de ser uma "ciência exata". E há coisas engraçadas que se repetem. Hoje em dia um plano estratégico de promoção tem muitas semelhanças com um de 1982.
Não nos podemos esquecer que somos um país pequeno, que não estamos dentro da indústria galáctica e que por isso deveríamos ter, também, alguma imaginação para podermos ser nós próprios diferentes em relação à maneira como abordamos, como divulgamos, como fazemos as coisas. Não querer ir a correr clonar ou fazer igual ao que fazem lá fora. Porque pode dar como pode não dar certo.
Mas hoje em dia a divulgação passa muito pelas redes sociais, pela internet, coisa que há 20 anos não era assim...
Claro, mas a grande questão também está aqui nesta dualidade entre informação e formação. A internet tem pouca cola. Há muita divulgação, mas o que é que as pessoas retêm, de facto, dessa divulgação? A quantidade das coisas que existem e a velocidade com que passam e tudo isso, não tem cola. É mais como a cola do post-it. Muita informação e pouca retenção.
Relativamente ao regresso dos Trovante, o planeado é só mesmo realizarem os dois concertos já marcados para 2026?
Sim, isto também não foi uma iniciativa nossa. Estávamos desativados, tranquilamente, cada um na sua vida, no seu trabalho. Surgiu a proposta da Sons em Trânsito para fazermos estes dois espetáculos para celebrar os 50 anos da nossa formação - não de carreira porque os Trovante duraram 16 anos.
Conversámos uns com os outros, achámos que seria engraçado e pelo menos matamos saudades uns dos outros. E vamo-nos divertir e trazer às pessoas aquilo que eram os Trovante. Com alguns anos a mais, mas vamos tocar as músicas da mesma forma, não vamos fazer arranjos novos. A ideia é que filhos ou pais que nunca viram os Trovante na vida, podem vê-los.
Houve alguma hesitação ou disseram logo 'sim' a este regresso?
Hesitações há sempre, há que ponderar, fundamentalmente para quem tem vidas artísticas a rolar e a trabalhar. Todos temos as nossas vidas e tivemos que pensar o que é que isso ia significar. Quando se trata de algo que nos trouxe tanta coisa boa na vida e significa tanto para nós, nunca poderíamos tomar uma decisão destas de ânimo leve sem pensarmos muito bem o que é que isso significaria.
Isso em termos práticos de carreira, mas no que diz respeito a nostalgia com este regresso…
Isso é muito engraçado, embora eu nos meus espetáculos toco algumas músicas dos Trovante porque fazem parte da minha vida, do meu acervo. Mas há outras que nunca mais tocamos. E de repente é pensar como é que vamos tocar isto outra vez, pegar nos instrumentos e voltar a tocar da mesma forma, fazer o mesmo exercício…
De repente, estarmos outra vez no palco e podemos estar a tocar e olharmos uns para os outros, lembrarmos várias situações…
Acredito que têm muitas histórias…
Sim, e isso às vezes até nos distraia porque estamos no palco e a lembrar-nos. É uma coisa boa, no entanto, 'água a mais afoga a planta'. Portanto, isto são coisas para serem vividas com aquela conta, com aquele peso e com aquela medida.
Mas já estão em ensaios?
Não. Cada um está a fazer o seu trabalho de casa e depois é só uma questão de nos juntarmos e juntar as peças. E termos uma alma cheia de recordações e coisas boas, e pensarmos que o que vai acontecer é exatamente isso. É trazermos à tona d'água uma data de coisas boas.
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