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Histórias do corpo, do Ballet Gulbenkian e do país unidas em documentário

A história "revolucionária" do Ballet Gulbenkian e da própria fundação que o criou, nos anos 1960, unem-se ao corpo e ao destino do país, desde a ditadura à democracia, no documentário de Marco Martins que se estreia em junho.

Histórias do corpo, do Ballet Gulbenkian e do país unidas em documentário
Notícias ao Minuto

11:21 - 28/05/22 por Lusa

Cultura Marco Martins

Iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian, produzido pela Vende-se Filmes, com a participação da RTP, "Um Corpo que Dança -- Ballet Gulbenkian 1965 -- 2005" será exibido a partir de 16 de junho nas salas de cinema e, posteriormente, na televisão.

"O que se tornou para mim muito evidente desde o início era que a história do Ballet Gulbenkian não era só o que se passava dentro daquela instituição, mas a relação que a Gulbenkian tinha com a sociedade portuguesa no Estado Novo, na revolução e no pós-revolução", comentou o realizador Marco Martins, em entrevista à agência Lusa, recordando o momento em que começou o projeto.

Ao entrar na história dos 40 anos da companhia de bailado da Gulbenkian -- desde a criação em 1965 até 2005 -- o realizador constatou que essa complexa e próxima relação "também ajudava a criar uma outra história que ainda não tinha sido registada, a história do corpo, mais do que a história da dança, até porque as duas se tocam".

Composto por capítulos, o documentário acompanha o percurso de uma das maiores companhias de dança portuguesas do século XX e dos seus mais destacados bailarinos, coreógrafos, diretores artísticos e responsáveis da Gulbenkian na área da cultura, sobretudo Madalena Perdigão, figura tutelar e impulsionadora de muitos projetos nesta área.

Marco Martins aceitou trabalhar na história de uma entidade cuja atividade foi muitas vezes fraturante e cujo fim gerou polémica, e ainda hoje gera um lamento emotivo por parte de quem nela participou.

"Essa ideia do vazio que ficou. Eu sentia que era material muito delicado, não só a nível pessoal, porque houve pessoas que estiveram quase 20 anos na companhia", comentou o realizador, sobre bailarinos que ali se formaram e depois viriam a ser coreógrafos, ou diretores artísticos como Jorge Salavisa, uma das figuras mais importantes na história do Ballet Gulbenkian.

O realizador relatou que este documentário "era um projeto muito antigo do Jorge Salavisa", sobre quem já tinha anteriormente realizado um filme biográfico.

"Aborda a vida de Salavisa sobretudo no seu percurso na dança, a sua ida para Londres, e no Ballet Gulbenkian, mas era pequeno e uma espécie de ensaio", recordou, acrescentando que o diretor artístico alimentou o desejo de ser criado um documentário sobre o Ballet Gulbenkian.

Marco Martins foi sendo repetidamente convidado para criar este documentário, mas adiou por outros projetos "e porque era um material muito delicado, com uma grande dimensão".

"Esta companhia, que durante muitos anos foi a única em Portugal, e que revolucionou de várias maneiras a dança em Portugal, tocava em muitas partes da vida da dança e da sociedade em geral", afirmou.

O convite foi repetido "quase todos os anos", até chegar a uma altura em que coincidiu com a morte de Jorge Salavisa, em setembro de 2020, e também o período da pandemia.

"Eu estava a fazer uma longa-metragem em Inglaterra que parou com a pandemia, e recebi um convite da Gulbenkian nessa altura. Foi então que decidi avançar porque tinha tempo e queria fazer uma homenagem ao Jorge Salavisa", contou à Lusa, sobre a génese do documentário.

"Comecei a mergulhar naquela história, através dos arquivos: tive acesso a todos os arquivos do Ballet Gulbenkian, para além dos arquivos da RTP e da Cinemateca", relatou o cineasta, sobre um universo arquivístico "riquíssimo" que existe nestas entidades.

Imagens do dia 25 de Abril de 1974, depoimentos de jovens que abandonaram o ensino, rostos de bordadeiras, o olhar de sofrimento de um soldado ferido na guerra colonial, ensaios dos bailarinos da Gulbenkian com Carlos Paredes a tocar ao vivo, muitas são as imagens que espelham a história da evolução da dança no país e também o contexto, social, político e económico entre 1965 e 2005.

"Era muito importante relevar a importância do Ballet Gulbenkian dentro da sociedade. Como explicar a uma nova geração a importância que aquela instituição, e neste caso, que o ballet teve, numa sociedade?", questionou-se o realizador durante o processo de trabalho.

Marco Martins quis mostrar "o que a Gulbenkian representava no Estado Novo, nos anos 1960, como era o país, quais eram os preconceitos em relação à dança, às mulheres e aos homens que dançavam, a decadência" de uma sociedade aprisionada pela ditadura.

O filme inclui testemunhos de figuras como Walter Gore, Milko Sparemblek, Jorge Salavisa, Ricardo Pais, José Wellenkamp, José Sasportes, Olga Roriz, Vera Mantero, Filipa Mayer, Isabel Ruth, Clara Andermatt, João Fiadeiro, Rui Horta, Bem-Vindo Fonseca, Armando Jorge, Luna Andermatt, Ana Mascolo e Rui Vieira Nery.

O documentário é feito de "histórias de pessoas que, em determinadas alturas, tomam certas posições, como foi o caso de Madalena Perdigão, em dois períodos muito distintos, em que é absolutamente fundamental", sublinha Marco Martins, recordando que, no período da ditadura, "a sociedade portuguesa era muito atrasada e conservadora".

Madalena de Azeredo Perdigão (1923-1989), que criou e dirigiu, a partir de 1962, os serviços de música, coro e o ballet Gulbenkian, "é uma mulher de uma visão extraordinária".

"Pessoalmente, eu não a tinha ainda estudado em profundidade, e quando começo a pesquisar o Ballet Gulbenkian, apercebi-me que era a grande ideóloga de tudo o que acontecia ali, na orquestra, no coro, nas escolas de música e da dança. O [José de] Azeredo Perdigão [1896-1993, primeiro presidente da Gulbenkian] era o grande estratega e o homem político nas relações com o poder e na forma como manter um estatuto independente da fundação", destrinçou Marco Martins.

Depois, a partir de 1984, nos Encontros ACARTE, criados por Madalena Perdigão, "surge uma nova revolução dentro da fundação, sobretudo pela possibilidade do encontro de bailarinos com novas linguagens e novas formas de pensar a dança".

Desde a sua origem, no Grupo Experimental de Ballet, do Centro Português de Bailado, ao grupo Gulbenkian de Bailado e finalmente ao Ballet Gulbenkian, são vários os passos e diretores artísticos, inicialmente estrangeiros, a começar por Norman Dixon e Walter Gore, e depois o croata Milko Sparemblek.

Com a saída de Jorge Salavisa, em 1996, sucedem-lhe a coreógrafa brasileira Iracity Cardoso e, finalmente, Paulo Ribeiro, que assiste ao polémico encerramento da companhia.

No documentário, José Sasportes, ex-diretor do serviço ACARTE e ex-ministro da Cultura, especialista da área da dança, afirma que o desaparecimento do Ballet Gulbenkian deixou "um vazio que ainda hoje se nota".

"O que José Sasportes diz no filme é muito justo: uma coisa é a existência das pequenas companhias de autor, que podem e devem ser apoiadas pelo Estado e pela fundação, e que se constituem como uma nova forma de olhar a dança e um novo paradigma, que já não são as companhias de 20 ou 30 bailarinos", disse o cineasta à Lusa.

Mas, na sua opinião, "não substitui uma companhia de referência como o Ballet Gulbenkian ou a Companhia Nacional de Bailado, em que os criadores são convidados a criar dentro de outra dinâmica que permite a criação de outro género de obras e uma coisa não anula a outra".

O documentário explica em grande parte o que leva à extinção do Ballet Gulbenkian: "Por um lado é a explosão da nova dança portuguesa, o aparecimento de muitas linguagens e companhias de autor, e a Gulbenkian começa a apoiar essas companhias, numa primeira fase, e extingue depois o Ballet Gulbenkian porque considera que já não é pertinente, mas por outro lado, soube sempre reinventar-se".

A questão fica em aberto, no documentário, remata Marco Martins: "É uma discussão que vale sempre a pena fazer".

Num profundo trabalho de pesquisa, a equipa extensa do cineasta incluiu vários colaboradores, uns mais no campo na imagem e movimento, outros na fotografia e quatro montadores, entre outros, como Sara Coelho, Rita Quelhas, Catarina Lino, Paulo Sabino, Ana Bigotte Vieira, João dos Santos Martins, Luiz Antunes e Maria José Fazenda. A música original é do pianista Filipe Raposo.

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