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Tenório criou livro que é "delicada" saga familiar acossada pelo racismo

'O avesso da pele', do escritor brasileiro Jeferson Tenório, que chegou esta semana às livrarias portuguesas, é "uma história sobre pais e filhos, atravessados pelo racismo e pela recuperação de uma humanidade perdida".

Tenório criou livro que é "delicada" saga familiar acossada pelo racismo
Notícias ao Minuto

12:43 - 11/04/21 por Lusa

Cultura Jeferson Tenório

As palavras são do próprio autor, que, em entrevista à Lusa, admite que a obra é "bastante" biográfica, o que "não diminui o rigor estético e a elaboração da linguagem que é o que torna este relato uma ficção".

"O avesso da pele", publicado pela Companhia das Letras, parte do relato de Pedro, que constrói uma narrativa familiar, depois da morte do pai, a partir dos seus objetos deixados na casa: "os objetos serão o teu fantasma a me visitar", afirma o narrador.

O pai de Pedro morre baleado pela polícia, ao sair da escola onde dava aulas, mas ao longo da vida são várias as vezes em que foi abordado pela polícia, por causa da cor da pele, a primeira das quais, com apenas 14 anos.

"Corpos negros em espaços públicos no Brasil são sempre corpos em situação de risco. Moro no sul do país [Porto Alegre, cidade descrita no livro como "a mais racista do Brasil"], onde a população é maioritariamente branca. Sinto o racismo desde há muito tempo. Sofri inúmeras abordagens policiais pelo simples fato de estar caminhando na rua, algumas dessas abordagens foram semelhantes à que meu personagem Henrique sofreu", contou o autor.

Trata-se, pois, de uma história assente nos temas do racismo, da pobreza e da paternidade, desvendada logo no início do livro, quando o narrador afirma: "Anos a fio, suportar a pobreza, o racismo e a ausência paterna foi uma espécie de sinónimo da vida".

Mas pensando na história, "já um pouco distanciado", Jeferson Tenório percebe que escreveu "uma narrativa delicada sobre pai e filho e que são atravessados pelo racismo e acossados pelo legado da pobreza".

Ao longo da narrativa, construída de forma não linear, com recuos e avanços no tempo, Pedro conta a história dos pais, Henrique e Martha, desde a infância, refletindo simultaneamente a história do racismo estrutural no Brasil.

"As experiências negras no mundo são muito parecidas. 'O avesso da pele' não foge à regra ao representar a violência provocada pelo racismo no Brasil. 'O avesso da pele' revela que o país não conseguiu resolver as heranças nefastas deixadas pela escravidão. O racismo atinge a população negra quotidianamente, sou um escritor negro e também me sinto afetado por esse racismo endémico, deste modo é natural que este tema apareça em minha literatura".

O título desta obra surge num ensinamento passado de Henrique para o filho: "É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar na vida".

A frase alude a um ciclo vicioso, que perpetua uma situação de desvantagem dos negros em relação aos brancos aos olhos da sociedade, reconhece o autor.

"Vemos no livro personagens que lutam pelo direito de serem reconhecidos como humanos. A racialização dos corpos negros induz a sociedade a enxergá-los sempre como sujeitos destituídos de inteligência, de certas capacidades sociais, e tendem a determinar suas condutas a partir da cor da pele. Isso significa dizer que brancos não precisam reafirmar sua humanidade, ao passo que homens e mulheres negros precisam lutar por isso quotidianamente".

Ao longo da história o autor lança algumas farpas à falta de ação concreta, sobretudo política, contra o racismo, e isso está patente em passagens, como uma conversa de Martha com o marido sobre a mãe, alcoólica, em que diz que "quem a manteve de pé [...] não foi o discurso do movimento negro, mas as garrafas de cerveja e cachaça".

Jeferson Tenório considera que houve "avanços neste sentido e que hoje em dia expressões como "racismo estrutural", "branquitude", "lugar de fala" e "vidas negras importam" estão na ordem do dia, mas do ponto de vista prático ainda se está "longe de resolver o racismo".

"Estamos vivendo num país governado por um presidente genocida e ultra-direitista que apoia o racismo e o extermínio de povos indígenas, por exemplo. Estamos vivendo numa condição caótica da pandemia, com mais de quatro mil mortes diárias, e quem mais sofre com isso são os negros e pobres. Tudo isso por conta de um presidente negacionista. Portanto, enquanto, tivermos um Governo assim estaremos longe de resolver o racismo", acusou.

Nesse sentido, Jeferson Tenório olha para a própria literatura como um instrumento, não necessariamente político, mas de "reflexão profunda na sociedade" e de "luta contra as desigualdades".

"A literatura existe para contestar a sociedade. Escrevo para discordar da vida como ela é", afirma.

Sobre a opção de estruturar a narrativa a partir do relato de um filho, o autor conta que "há uma relação direta com o personagem Hamlet, de Shakespeare, pois Pedro de certo busca também 'vingar' a morte do pai, oferecendo para o leitor uma narrativa que restitua sua história".

"Eu precisava de um narrador que expressasse uma determinada honestidade sentimental, que fosse próximo ao personagem Henrique. Pensei numa espécie de carta de um filho ao pai morto. Como um modo de presentificá-lo na vida do filho, apesar da ausência".

Este livro nasceu da "necessidade de contar uma história sobre pais e filhos, sobre professores e sobre a violência do racismo no Brasil", tudo situações com que o autor se identifica, na medida em que além do racismo, Jeferson Tenório sentiu na pele a ausência do pai -- que abandonou a família quando ele tinha três meses -, e, tal como Henrique, é também professor.

"Por muitos anos alimentei esta vontade, no entanto faltava-me maturidade para escrevê-la. Somente em 2016 comecei esta narrativa e terminei-a em 2019".

'O avesso da pele' é o terceiro livro do autor carioca de 43 anos, o primeiro publicado no Brasil por uma grande editora, a Companhia das Letras, e o primeiro publicado em Portugal.

Mesmo neste meio, Jeferson Tenório identifica os entraves que a sua cor de pele coloca: "demorei bastante para publicar meus primeiros livros. Há um racismo editorial bastante visível no Brasil".

No entanto, a publicação de 'O avesso da pele' tem colecionado elogios dos leitores e da crítica, que fala de uma obra corajosa, consolidando o autor como uma das grandes vozes da literatura brasileira contemporânea.

Jeferson Tenório nasceu no Rio de Janeiro, em 1977. Radicado em Porto Alegre, é doutorando em Teoria Literária, e estreou-se na literatura com o romance 'O beijo na parede' (2013), eleito livro do ano pela Associação Gaúcha de Escritores. É também autor de 'Estela sem Deus' (2018) e agora de 'O avesso da pele', que está a ser adaptado ao cinema.

Primeiro negro eleito patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, em 2020, Jeferson Tenório tem sido alvo de ameaças de mensagens de ódio, por causa de artigos de opinião que escreveu, nos quais tece elogios ao ex-presidente do Brasil Lula da Silva e ao educador Paulo Freire.

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