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Artista conspira contra a História por excluir certos corpos e práticas

Depois de ter ouvido várias vezes que alguns lugares não são para "certos corpos", a artista transgénero Odete venceu a primeira edição do concurso RExFORM - Projeto Internacional de Performance, uma conquista sentida como "um feito", na história das artes portuguesas.

Artista conspira contra a História por excluir certos corpos e práticas
Notícias ao Minuto

10:47 - 25/01/21 por Lusa

Cultura Odete

Desta vez não foi o preconceito que impediu a apresentação do projeto vencedor, a 'performance' 'On Revelations and Muddy Becomings', no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), que tinha estreia marcada para 15 janeiro. Foi a necessidade de um confinamento para combater a expansão da pandemia, que obrigou a cultura a encerrar a partir desse mesmo dia.

"Ganhar o prémio é importante, sobretudo pelo peso que tem uma instituição como o MAAT, e quando se tem 25 anos acabados de fazer", disse, entrevistada pela agência Lusa.

Para a artista, nascida no Porto, em 1995, e a residir em Lisboa, esta conquista "é realmente um feito, porque não há muita representação 'trans' na História da arte portuguesa, e nas artes portuguesas em geral", e considera-a mesmo "um marco histórico" porque "em Portugal faltam muitas coisas no que toca a política de identidade".

"De repente, aceder a um espaço, um museu conceituado, sobre o qual foi dito a certas pessoas que não é delas, tem um impacto histórico nas artes portuguesas estar presente, até porque um museu tem uma atividade de arquivo importante", destacou a artista, que fez o curso de Artes do Espetáculo na Academia Contemporânea do Espetáculo -- Escola de Artes, no Porto, em 2013, e tem também um bacharelato em Estudos Gerais, pela Universidade de Lisboa.

Odete - cujo trabalho se encontra no cruzamento da escrita, da música, da 'performance' e das artes visuais - apresentou anteriormente trabalhos em espaços culturais como o Teatro São Luiz, em Lisboa, e os teatros Rivoli e Carlos Alberto, no Porto, mas esta seria a primeira vez que estaria presente com a sua arte num museu.

O espetáculo deverá ser remarcado no MAAT para o final do confinamento, e está também prevista a apresentação na Bienal BoCa de Arte Contemporânea, a partir de setembro, em Lisboa, contando ainda com a participação dos artistas Tita Maravilha e Herlander.

Cerca de 90 artistas apresentaram candidaturas ao RExFORM - Projeto internacional de Performance, que incide sobre a 'performance' "entendida enquanto prática colaborativa com ramificações que envolvem novos conceitos de teatralidade, coreografia e medialidade", segundo o concurso lançado no ano passado pelo MAAT.

Não sendo a prática artística favorita de Odete, a 'performance' "é a mais central, porque é um meio artístico com maior abertura do que a pintura ou a escultura só por si, por exemplo, e é aquele onde convergem todas as outras práticas, seja música, dança, escrita, acaba por ser o espaço mais orgânico".

Ao concurso, cujo vencedor recebe 12.000 euros para a concretização e apresentação de um projeto, concorreu com "MTF Priestesses Cutting The Bone to Reveal It's Lie", no qual propôs "uma abordagem crítica ao silêncio histórico em torno das questões do corpo, identidade de género e do mundo 'queer'".

Desde o início da carreira que Odete tem vindo a trabalhar "sobre as sombras e a política", conspirando contra o que considera ser "a escrita da História no sentido de nela inscrever certos corpos e práticas excluídas".

"Ter de me envolver em linguagens políticas para ter coisas básicas como direitos, isso vem da minha experiência pessoal. Eu também olho para o projeto como uma estratégia de pensar uma instituição artística como ferramentas vitais para sustentar certas comunidades, pessoas e práticas que não são sustentadas de outra forma, em termos de espaço, representação e financeiramente", sublinhou.

Sobre a abertura das instituições culturais portuguesas a artistas transgénero, Odete considera que, "apesar de haver uma estrutura opressora na sociedade portuguesa em geral, não chega a haver discriminação, mas uma certa exotificação, uma curiosidade quase mórbida pela realidade 'trans' que prejudica um bocadinho o acesso a estes espaços institucionais, e a estes apoios financeiros".

Relativamente à pandemia teve impacto no seu quotidiano e nos apoios que tem tido, a artista referiu que tem estado a ocupar-se sobretudo de projetos na área da música, a criar bandas sonoras para filmes e espetáculos a nível internacional.

"De certa forma, isso tem-me sustentado durante a quarentena, mas se calhar não é o suficiente para me sustentar dois ou três meses. Para já, é possível sobreviver, mas o futuro está muito incerto", disse, alertando para o facto de conhecer artistas "em situação limite".

"Na quarentena passada, estava a receber cerca de 200 euros por mês, mas isso não é sustentável", avaliou, sugerindo que os apoios deveriam passar por reduzir valores no pagamento de rendas, por exemplo.

O projeto foi composto por três partes - um livro mágico, um videojogo e uma 'performance' - e pretende ficcionar uma sociedade secreta que se apresenta ligada a nomes como Joana d'Arc, Eliogabalus e Chevalier D'Eon.

A escolha foi feita por um júri composto pela diretora do MAAT, Beatrice Leanza, a curadora sénior de 'performance' da Tate Modern, Catherine Wood, a diretora de artes performativas do Centre Pompidou, Chloé Siganos, e o diretor artístico da BoCA, John Romão.

O prémio foi criado em parceria pelo MAAT e a BoCA - Bienal de Arte Contemporânea, com o objetivo de apoiar criações de jovens artistas até aos 35 anos, encorajando novos discursos sobre a evolução do conceito de 'performance'.

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