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"Maioria das pessoas é incapaz de dizer que é contra receber refugiados"

Personagens misteriosas, suspense e um tema atual - é isso que podemos encontrar em 'Os crimes de Hamburgo'. O Notícias ao Minuto esteve à conversa com o autor do livro, Francisco Carvalho.

"Maioria das pessoas é incapaz de dizer que é contra receber refugiados"
Notícias ao Minuto

09:40 - 10/03/20 por Sara Gouveia

Cultura Os crimes de Hamburgo

Tudo começa com os assassinatos misteriosos de refugiados oriundos de países muçulmanos, por entre descrições pormenorizadas sobre Hamburgo, encontramos Anna Ostmann, uma detetive veterana responsável pela investigação destes crimes e que se debate com um problema maior: a perda da lucidez e o aproximar da loucura.

A história é uma corrida contra o tempo onde se cruzam as vidas das várias personagens. Há um polícia recém-chegado ao departamento de homicídios, um casal cujo casamento recente é posto à prova pela colaboração da mulher no projeto incendiário de um magnata da comunicação social numa cruzada contra o Islão, bem como pelo papel do marido à frente de uma obra no porto de Hamburgo condenada ao fracasso. 

Encontramos também um jovem refugiado sírio, que ao dar os primeiros passos numa nova vida cheia de promessas, se vê envolvido em algo pior do que os terrores de onde fugiu e, no meio de tudo isto, um homem que aterrou em Hamburgo na véspera do primeiro homicídio com um propósito desconhecido.

O Notícias ao Minuto esteve à conversa com Francisco Carvalho, autor deste livro policial com uma temática tão atual, que nos desvendou um pouco mais sobre esta história viciante e sobre os apontamentos da sua própria vida que o ajudaram a construir o enredo.

O Francisco viveu em Hamburgo durante alguns anos, foi onde foi buscar a inspiração para escrever esta história?

Sim, foi mesmo. Não foi um projeto em que pensei em escrever um livro sobre refugiados, policial, naquele local específico. Não. Primeiro foi a cidade e depois é que veio a história. Foi o contacto com Hamburgo e de repente gostar tanto daquela cidade, que não é como as outras cidades mais conhecidas, sobre as quais já se tem uma data de ideias feitas. De repente descobrir aquela cidade tão rica, tão espetacular, sem ter nenhuma pré-concebida e vivê-la, acaba por se sentir a cidade muito mais como sua.

Estava a escrever um livro até passado em Lisboa, porque é a cidade onde moro, acabei por parar e por começar a escrever o esboço do que seria uma história interessante passada em Hamburgo e essa ideia foi ganhando corpo e de repente dei por mim e já estava a escrever uma história grande e depois continuei-a.

E o que aconteceu ao livro que estava a escrever sobre Lisboa?

Esse acabou por ficar interrompido. Agora, estou a escrever - e só não estou a escrever mais rapidamente porque tenho uma filha bebé e ainda está a ser difícil descobrir como regular a escrita ao mesmo - mas vai ser passado em Lisboa e é diferente, já não vai ser um policial.

Só há uma personagem portuguesa no livro. Porque é que escolheu descrevê-la de uma forma tão negra?

Essa personagem portuguesa podia nem ser uma personagem portuguesa, podia ser de outro sítio qualquer. Era a personagem mistério, era o joker, era aquela carta que até me custou mais caracterizar, ao contrário das outras, que imaginei logo de princípio, como eram e que rapidamente conheci, essa ao princípio até me atrapalhou e estava sem saber bem quem era aquele homem.

A descrição não foi pensada tendo em conta a nacionalidade. Foi uma espécie de descoberta ao contrário. Tinha as outras personagens que conhecia e que estava interessado a ver onde é que eles iam e depois tinha esta um bocado errática e um pouco misteriosa que queria associar uma pessoa misteriosa e que demorasse mais tempo a desvendar. Nesse momento ainda não sabia onde é que isso me iria levar, tive de ir percebendo quem era e até depois reescrever para trás depois de já saber quem ele era.

Neste livro fui acompanhando as personagens, não foi um livro em que a história já estivesse desenhada à partida e que depois fosse só escrever. Não, pensei nas pessoas, pensei no ponto de partida, mas depois não sabia onde é que isso me ia levar, não sabia o que é que ia acontecer no fim. Há várias partes no desfecho que só descobri enquanto escrevia. Embora, claro, a certa altura mais para o fim tive mesmo de saber para onde ia, tive de esquematizar um bocadinho.

Porque é que escolheu o tema dos refugiados para o centro desta história?

Foi o ambiente. Hamburgo deu-me vontade de escrever e a ideia que imediatamente me ocorreu foi, inspirado pelo contexto, porque se falava nisso, porque se via isso, porque estava-se a viver aquilo. Já não era com tanta intensidade como na altura em que o livro se passa, em que entram todos aqueles refugiados e têm de se criar os campos de acolhimento, que são retratados no livro. Passa-se na mesma altura em que a Angela Merkel decide receber mais de um milhão de refugiados de repente, na esperança que o resto da Europa fizesse o mesmo, depois não foi assim que as coisas se passaram. 

A minha ideia foi então pensar sobre o que é que aconteceria se começassem a aparecer refugiados assassinados na Alemanha. Seria uma coisa muito melindrosa e delicada, certamente, pois há um trauma.

Há um peso inerente nestes crimes por se passarem na Alemanha, tendo em conta o que a História nos recorda da Segunda Guerra Mundial. Isso foi propositado?

Foi minimamente propositado. Foi uma ideia de repente, pensar que ali seria pior do que noutro sítio qualquer. Foi só isto. Depois a ideia foi-se desenvolvendo. Mas não foi propriamente um manifesto político, aliás no livro tento que nunca passem ideias políticas, são as personagens que contam as coisas e têm todas ideias muito diferentes.

Há algumas personagens no livro com ideias muito extremadas no que diz respeito ao assunto. Como é que as criou? Assemelham-se à realidade?

Veem-se pessoas na comunicação social e nos jornais que são mais extremadas. A maioria das pessoas é incapaz de dizer que é contra receber refugiados, agora claro que há outras, talvez uma minoria e se calhar não é assim tão pequena, porque podem ter vergonha de dizer publicamente mas depois quando votam não acham assim tanta graça.

Há várias razões para ser contra ou favor - a pessoa pode ser contra porque é racista ou pode ser contra porque acha que está a ser mal feito ou precipitado, como por exemplo uma das personagens que diz que não acha mal, pelo contrário, mas que acha que foi mal feito por ter sido tão de repente e sem criarem as condições.

Da sua experiência em Hamburgo qual era o ambiente que se fazia sentir no que dizia respeito à decisão de receber refugiados?

Aquilo tem um bocadinho a ver com as zonas da cidade. As pessoas gostam de receber os refugiados e as conversas que uma pessoa tem normalmente são nesse sentido. Mas, por exemplo, havia lá um bairro bom, assim como se fosse Cascais ou o Restelo, onde decidiram fazer um centro para acolher refugiados num pavilhão e os moradores opuseram-se veementemente. Ou seja, as pessoas gostam mas também não queriam ter ali ao lado de casa.

Depois, por outro lado, há bairros onde se veem muitas pessoas desses países, porque são sítios mais pobres, onde o Estado tem as rendas controladas e onde consegue pôr as pessoas e isso às vezes acaba por ser o problema nos sítios - quando põem toda a gente no mesmo sítio. Mas diria que os alemães estão a fazer as coisas bem feitas e que se esforçam ao máximo para ter a geografia social da cidade bem planeada. 

Em França e na Bélgica é diferente, existem problemas gravíssimos de focos de pessoas marginalizadas por estarem desenquadradas e por serem muçulmanas e que vivem todas no mesmo sítio, o que acaba por ser muito mais agressivo do que na Alemanha, onde as coisas são debatidas com alguma naturalidade, embora exista gente mais extremada, é um tema que se vê ser falado.

O facto de ter estado na Líbia, um dos países de onde vêm muitos refugiados, sensibilizou-o de alguma forma para este tema?

O escritório onde trabalhava tinha um cliente português que estava com um concurso público de construção na Líbia e tive uns tempos lá, em Tripoli. Foi três anos antes de cair o Khadafi [2011] e de acontecer aquela guerra civil que ainda hoje decorre.

A Líbia é um dos países de origem de muitos destes refugiados. É um país que embora seja muito grande geograficamente, socialmente é um país pequeno, tinha menos pessoas que Portugal - tinha uma classe média que se via na rua, com vidas normais. Tripoli fazia lembrar postais de Lisboa, o tipo de pessoas dos anos 50, os homens com bigode, as mulheres com lenço, mas mais parecido com Portugal do que com a Arábia Saudita, conheci muita gente e pensar que aquelas pessoas são os refugiados de hoje claro que me fez ter uma sensibilidade maior.

A obra tem muitos cenários reais, nota-se nas descrições da cidade, do clima, que outras partes da história são reais, podemos saber?

Quis que a cidade fosse um protagonista na história e começar cada capítulo num sítio diferente da cidade, quase sempre. Inspirei-me nas várias zonas que a cidade tem, nas várias perspetivas e essa parte é toda real, praticamente, com algumas permissões artísticas, mas é a parte mais real. Depois as conversas das personagens, quando falam de um acontecimento, de uma referência, os sítios físicos são reais, mas por exemplo a obra do porto foi inventada para a história.

Mas onde procurei ser mais honesto foi na geografia física e politicamente, para não dizer coisas disparatadas que não aconteceram ou que não podia ter acontecido.

Com essa realidade contrasta também uma parte mais espiritual/ficcional, na forma como descreve a detetive, Anna Ostmaan.

A Anna Ostmaan fazia parte da inspiração inicial. O estado de espírito, o problema com que ela se está a debater, aquela angústia psicológica ou existencial que tem por ter sido, durante muito tempo auxiliada por um sexto sentido, que lhe permite chegar rápido e ver coisas que os outros não veem, como se fosse uma intuição sobrenatural mas que neste momento da vida dela está a transformar-se quase numa assombração, que a está a destruir, que está fora de controlo, que não lhe está a servir para nada de bom e parece que está em processo de desagregação. 

Tudo isto fez parte da ideia inicial. Não foi uma viragem, pelo contrário.

De que forma é que a sua formação como advogado ajudou a construir a narrativa?

Não obviamente, ou seja, não retrata o mundo da advocacia. Agora, acho que o rigor posto em algumas coisas, alguma arquitetura mais complicada da história, venha da experiência a trabalhar na advocacia. Mas não há nada muito evidente, podia ter posto lá uma personagem que fosse advogado, mas não. Tem uma parte no fim que fala num julgamento mas sem grande profundidade. Não teve nada de muito palpável, há-de ter tido certamente influencia na maneira de pensar e escrever, mas não sei dizer exatamente em quê. 

Sempre quis ser escritor? Já escrevia antes?

As duas coisas. Sempre quis escrever e escrevia, mas depois quando tirei o curso e durante os primeiros dez anos de trabalho parece que o Direito congelou a escrita, matou a criatividade. Mais tarde, já na casa dos 30, voltei então a escrever, desta feita com renovado vigor. Escrevi muitos contos e o primeiro livro que escrevi finalmente, do princípio ao fim, foi este e espero escrever muitos outros. Embora, como disse anteriormente, neste momento esteja num período difícil [risos].

Esta é a primeira experiência publicada. Que mais podemos esperar?

Tenho uma série de coisas que gostava de escrever, pior é que sei que quando começar se calhar vão começar a aparecer outras e que as que tenho pensadas não vão ser exatamente assim. Se fosse fazer todas as histórias que tenho mais ou menos esquematizadas já era uma grande produção, mas nada de carreira no policial. Tenho ideias muito diferentes. Uma das que tenho agora em mãos é uma espécie de comédia social e política passada no Portugal contemporâneo, em Lisboa, com algum humor negro, também tenho uma história de terror. Gosto de passear por géneros diferentes, não quero nada ficar agarrado a apenas um.

Notícias ao Minuto© CoolBooks

'Os crimes de Hamburgo' foi editado pela CoolBooks e está à venda nas principais livrarias.

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