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"Mesmo quando ácido, o humor pode ser carinhoso, e deve sê-lo"

Ivo Canelas regressou onde começou a digressão de uma peça que tem vindo a esgotar espetáculos e que tem levado muitas pessoas a refletir, com humor, sobre temas por vezes difíceis de abordar.

"Mesmo quando ácido, o humor pode ser carinhoso, e deve sê-lo"
Notícias ao Minuto

17:39 - 08/10/19 por Marina Gonçalves

Cultura Espetáculo

Todas as Coisas Maravilhosas’ é a história de uma criança de sete anos que cria uma lista onde partilha aquelas que vê como as coisas maravilhosas do mundo para tentar ajudar a mãe, que enfrenta uma depressão. Esta é uma história que acompanha aquele jovem, a família e o que os rodeia, abordando vários aspetos comuns a muitas outras vidas.

Trata-se de um monólogo mas realizado de forma diferente. Num espaço mais intimista, onde não há a barreira do palco e todos (ator e público) estão reunidos a ouvir uma história com que qualquer um se pode identificar. 

A depressão e o suicídio são temas abordados e que nos fazem refletir, sem nunca dar "soluções mágicas", mas levantando "muitas questões" e pondo-nos "de frente para os temas".

espetáculo estreou-se no início do ano no Estúdio Time Out, no Mercado da Ribeira, em Lisboa, e foi já levado a outras regiões do país. Agora regressou ao lugar onde subiu ao palco pela primeira vez e vai estar em cena até ao próximo dia 18 de outubro, com quase todos os espetáculos já esgotados. Em dezembro vai regressar ao Norte, mas para já ainda não há mais datas marcadas.

Após assistirmos à peça, interpretada por Ivo Canelas, estivemos à conversa com o ator. Uma entrevista onde o artista fala abertamente com o Notícias ao Minuto, sobre este que é para si um "grande e gratificante desafio", que chega no momento em que celebra 25 anos de carreira.

É um texto que tanto nos dá um murro no estômago e nos emociona, mas também, quase em simultâneo, nos faz rir‘Todas as Coisas Maravilhosas’ de Duncan Macmillan, é um monólogo que já fez sucesso em vários países e que foi adotado para o público português. Um desafio proposto pelo Hugo Nóbrega… Identificou-se logo com o texto?

O Hugo passou-me este texto, perguntou-me se eu estava interessado em fazê-lo. Li-o e achei o texto muito comovente e muito forte ao mesmo tempo, sem ter, no entanto, uma completa visão de todo o poder que ele poderia ter quando montado. Achei o texto particularmente comovente e tive de fazer o exercício de mostrar a outras pessoas um bocadinho para verificar que não era eu e que tinha um impacto mais transversal a vários tipos de pessoas. E confirmou-se. A partir daí foi uma questão de encontrar datas e levantar o espetáculo.

Este espetáculo, além de abordar temas complexos, também aborda outros mais ‘simples’ como a família, o amor, o crescimento... No fundo permite que, qualquer pessoa, a determinado momento da peça, se consiga identificar com ela?

Sim, “simples”, apesar de tudo tem sempre as suas complicações. Mas sim, sem dúvida. O texto é muito poderoso na sua aparente simplicidade e constrói uma série de imagem arquétipas como o primeiro animal de estimação, o primeiro namorado/a, o casamento. Portanto, aqueles marcos das vidas de quase todos nós. É um texto de uma profunda e fácil identificação. E isso faz com que as pessoas se envolvam muito nesta história.

O humor tem esta enorme capacidade de nos fazer ver ao espelho e ver o quão ridículos e tontos somos. E isso é muito importante porque nos questiona e abanaA depressão e o suicídio são os temas delicados que consegue abordar nesta peça e faz isso com algum humor. É mais fácil recorrer ao humor para falar de temas mais complexos?

Claro. O humor pode salvar-nos. O humor tem esta enorme capacidade de nos fazer ver ao espelho e ver o quão ridículos e tontos somos. E isso é muito importante porque nos questiona e abana. E abana-nos de uma forma que considero ser positiva. Não sou adepto de qualquer tipo de humor. Gosto de um humor que nos questiona, mas que o faz com carinho também. Mesmo quando ácido, o humor pode ser carinhoso, e deve sê-lo, a meu ver, para o podermos aceitá-lo e não rejeitá-lo, e crescer com ele. É um texto que tanto nos dá um murro no estômago e nos emociona, mas também, quase em simultâneo, nos faz rir. Acho que isso é que é fantástico. Eu gosto muito do género comédia dramática – esse híbrido que acho que é o mais semelhante à vida. Gosto muito quando as duas energias se complementam e não chocam uma com a outra. É perfeitamente possível e plausível, e até acho produtivo sentir as duas coisas ao mesmo tempo, uma tristeza profunda e uma enorme alegria. É muito bonito quando vejo no público essas duas emoções cruzarem-se em simultâneo, sem estranheza.

Nunca tinha tido o privilégio de fazer um espetáculo onde eu estivesse num palco convencional e onde visse o que é que está a ser provocado no público. Aqui, como não há iluminação, não há palco, estamos em arena, é um discurso direto, eu tenho o privilégio de ver o impacto que as coisas estão a ter nas pessoas e esse impacto é-me devolvido. Tenho imaginado um bocadinho a imagem de uma espécie de roda da bicicleta, em que eu sou o eixo e os aros todos são as nossas energias a irem de mim para as pessoas e a das pessoas para mim, que é um ribombar constante de autoalimentação mútua. Tem sido uma experiência única para mim.

E até acaba por ser diferente a forma como faz um monólogo porque acaba por cativar mais as pessoas, ao interagir com elas. Por vezes pode não ser fácil conseguir assistir até ao fim a um monólogo, mas desta forma pode acabar por ser mais fácil… Sente que há maior abertura por parte do público? Que acaba por estar mais atento?

Sim… Inicialmente há aquela estranheza natural de timidez nossa e do público em geral. Isso é rapidamente desmontado porque não há certo nem errado, e o que é pedido ao público não é quase nada, é só um pouco da sua atenção e generosidade. E quando as pessoas percebem que é só isso que lhes é pedido e não há ninguém que esteja a ser posto em questão, que ninguém fica mal visto, antes pelo contrário, as pessoas aderem muito generosamente e querem participar. E sim, concordo – isto é menos um monólogo e é mais um diálogo espiritual. Às vezes é mesmo um diálogo quando as pessoas se sentem confiantes o suficiente nesta realidade criada e partilham a sua como se estivéssemos mesmo num momento quase de terapia de grupo. É muito tocante quando isso acontece. 

Esta interação com o público foi uma ideia sua ou do Hugo, ou fazia parte do texto?

Não, o texto está construído assim. O texto propõe que não haja palco, que seja uma arena, e tem 65 frases que devem ser ditas por 65 pessoas. Esse é o pressuposto que vem no texto original.

Mas também permite que as pessoas possam dizer o que querem, porque nem sempre o público diz o que está escrito. Isso torna-se num desafio especial para si, que nunca sabe o que se vai passar…

Eu adoro isso, é incrível. É incrível sentir que as pessoas se sentem confiantes, à vontade, para fazerem isso, sentirem que estão seguras o suficiente e num ambiente protegido o suficiente para poderem sair fora do que está previsto, sem medo. Isso para mim é maravilhoso e leva-me para sítios muito fora de um espetáculo convencional.

Se tivesse de descrever, de forma muito sucinta, esta experiência, de que forma o faria?

Sabia que a depressão é transversal à sociedade, mas não tinha a noção do quão o suicídio também está próximo de todos nós e de como há uma necessidade, uma vontade e um desejo de falar e pensar alto sobre esse tema. Acho que a atenção e a generosidade do público são as duas ‘traves mestras’ onde eu encontrei grande parte do prazer em fazer este espetáculo. O público tem tido uma profunda generosidade nestas duas horas que está sentado a ouvir-me falar de coisas que nem sempre são fáceis de falar. A generosidade do público tem-me tocado profundamente.

Daquilo que vi, tem recebido um feedback enorme. Sente que as pessoas têm mostrado que o seu espetáculo as fez refletir?

Sim, isso é obviamente mérito do texto. O texto não é moralista e não apresenta soluções mágicas, mas levanta muitas questões e manda-nos de frente para os temas da depressão e do suicídio. Não tem nenhuma solução mágica a não ser aquela que nós todos sabemos que é ‘aproveita, olha à tua volta e reconhece o que é bonito’.

Uma vez que está a celebrar 25 anos de carreira, este espetáculo acaba até por ser uma prenda de aniversário para ti?

Nunca tinha pensado nisso nestes termos, mas sim [risos]. Tenho tido muita sorte nas propostas que me têm feito e nos projetos para os quais me têm desafiado. Este, sem dúvida, é o ‘último brinquedo’ e por isso tem sido o mais apetecível. Espero estar a conseguir dar tanto como recebo, porque tem sido incrível aquilo que tenho recebido neste espetáculo.

E quais são todas as coisas maravilhosas de ser ator?

Neste mundo digital em que vivemos hoje, é muito interessante esta acessibilidade e este retorno. Eu já trabalho nisto há muitos anos e nunca tive este retorno. Ou seja, muitas vezes, fazemos espetáculos e não sabemos se as pessoas gostaram ou não. Agora, com este mundo digital, é incrível e gratificante esta reação direta que te permite saber o feedback que estás a ter e aquilo que estás a conseguir alcançar com este espetáculo. Uma das coisas maravilhosas deste mundo tecnológico, para mim, é esta acessibilidade e este retorno digital de partilha e do agradecimento do que se passa em cada noite após noite, por exemplo, entre outras coisas.

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