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Músicas da Raia, memória de uma cultura que rompe fronteiras

Paulo Meirinhos é português, Luis Antonio Pedraza é espanhol e juntos criaram 'Músicas da Raia', projeto que recupera temas populares baseados na tradição oral de ambos países demonstrando que, nas terras de Arribas do Douro, as fronteiras se diluem.

Músicas da Raia, memória de uma cultura que rompe fronteiras
Notícias ao Minuto

07:50 - 10/06/19 por Lusa

Cultura Mirandês

Cai a tarde, é uma sexta-feira de maio, e Paulo e Luis preparam-se para um concerto no teatro de Bermillo de Sayago, no lado espanhol.

Paulo chega desde Miranda do Douro (Portugal) e Luis desde Zamora. Um fala mirandês - o segundo idioma oficial de Portugal - e o outro espanhol, mas compartilham a linguagem universal da música.

"Tocamos de um lado e outro da raia. Vão ver o quão fácil é partilhar música com os moradores do outro lado", começa Luis.

"Entendem mirandês, certo?", continua Paulo. E o público responde-lhe com um "siiiiiiiiim" fechado. Não há fronteiras.

Durante mais de hora e meia debulham temas da cultura comum pelas mãos de um projeto cofinanciado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), através do Programa Interreg V-A Espanha-Portugal (POCTEP) 2014-2020.

Estão acompanhados por tambores, pandeiretas, flautas, guitarras e, claro, gaitas, num repertório transfronteiriço que recupera em três idiomas - espanhol, português e mirandês - a memória musical da região, com peças como o romance de "La Burgalesa" ou "Adelina/Adelaida", a mesma mulher e a mesma história, contada com palavras diferentes numa e noutra margem do rio.

O repertório varia em função do palco e foi criado há ano e meio, quando nasceu o "Músicas da Raia", fruto de uma longa experiência e de uma admiração mútua.

"Conhecemo-nos. Queríamos saber mais do que fazíamos. Fizemos um esforço", resume Luis, acrescentando: "Foi como uma flecha". Uma flecha musical com final feliz.

"No fim pedi-lhe em casamento musical e aqui está", resume, em declarações à jornalista Mar Marin, da agência EFE.

Paulo Meirinhos, nascido em Miranda do Douro em 1972, estava destinado à música: "O meu avô tocava a caixa e a minha mãe cantava", recorda.

Paulo foi para o conservatório. É músico, professor e 'luthier' (profissional especializado na construção e no reparo de instrumentos de cordas, com caixa de ressonância). Toca sete instrumentos e criou em 1996 o Galandum Galundaina, reconhecido grupo folk luso que mergulhou nas raízes da música mirandesa e com o qual gravou meia dúzia de discos.

É também impulsionador do festival de cultura que se realiza desde 1989 em Miranda e do "L burro i l gueiteiro" ("O burro e o gaiteiro"), um festival com 10 anos.

É, além disso, diretor do coro infantil de Miranda e "guarda" do mirandês, uma derivação do asturo-leonês que se fala exclusivamente em Miranda - um tesouro que Portugal soube proteger como segunda língua oficial e que Paulo mima, consciente de que o seu futuro depende dos mais jovens, herdeiros desta joia da cultura ibérica que conjuga português, espanhol e palavras próprias.

É uma língua ligada à terra e à agricultura, que sobreviveu durante séculos e que enfrenta o desafio de integrar no seu acervo termos como internet, telemóvel e redes sociais, para continuar viva.

Já Luis Antonio Pedraza nasceu em Blanes (Gerona, Espanha), mas desde muito pequeno vive em Zamora. Sempre quis ser músico, não teve dúvidas, e aos 07 anos começou a preparar-se. Toca flauta, tambor, pandeireta, gaita, guitarra... e até a colher. Além de procurar a essência das músicas populares da raia, faz parte do popular grupo madrileno La Musgaña, criado em 1986 e que hoje, transformado em trio, se renova sem perder a sua essência.

Impulsiona também "Clave de folk" e "Rebambalancha", um projeto no qual toca flauta e tambor com orquestras sinfónicas de diferentes cidades espanholas.

O seu trabalho foi recompensado, e reconhecido, com o primeiro Prémio MT Jovem Valor da Música Tradicional em 2012 e com o primeiro Prémio Nacional de Tamborileiros em 2014 e 2015.

Na sua cabeça moram muitos planos de futuro, mas, a curto prazo, prepara um álbum com Paulo sobre "Músicas da Raia".

Ouvir este duo convence o mais cético de que não existem fronteiras na Ibéria.

"Cantávamos uma música e eles cantavam a mesma. A mesma cultura de um e outro lado da fronteira", lembra Paulo ao explicar a génese do projeto.

"As músicas misturam-se, a espanhola e a portuguesa. Todas da raia, aponta Luis. São, continua, músicas tradicionais "nascidas no povo e para o povo".

Este repertório dilui as fronteiras: "Somos todos um. Eu vivo em Miranda e a cidade grande mais próxima é Zamora. É a minha região. A minha região é Trás-os-Montes, mas é também Castela e Leão", ilustra Paulo.

"Temos algo muito importante, compartilhamos um meio fantástico: a península Ibérica", destaca Luis. E vai além, porque também não há fronteiras para esta música na Europa: "Voltamos a estar unidos graças à União Europeia. A nossa música, tanto do lado de Portugal como do lado de Espanha, é totalmente exportável".

No seu entender, o projeto tem "realmente muitíssima força, muitíssima identidade relativamente a outros países europeus", e, hoje em dia, a música que fazem "poderia perfeitamente encaixar em qualquer um dos festivais da Europa como algo identitário, como algo único e com muita personalidade".

Paulo completa a ideia: "Este é um projeto para apagar fronteiras. As fronteiras não existem devido às pessoas que vivem nelas. Essa é a ideia".

"Músicas da Raia" não se limita a compilar temas populares. Paulo e Luis reivindicam a identidade da região com instrumentos como a flauta pastoril, a pandeireta e a gaita. Não a gaita galega, esclarecem, mas as originárias da zona: a sanabresa e a mirandesa.

À primeira vista, parecem iguais, mas não são. Uma soa em "dó" e outra em "si bemol".

"Não têm nada a ver com a galega. São minoritárias, mas perpetuaram-se nestas terras. Estão ancoradas ao território", defende Luis.

A sanabresa está ligada a Zamora; a mirandesa nasceu na fronteira, com influências em todo o território português. São as estrelas do concerto, junto com a "caixa", velhos tambores que Paulo herdou do seu avô, um instrumento que "foi correr o mundo" e que passeou por palcos da Europa, América e Ásia.

Também a pandeireta é protagonista. É obra de Paulo - uma das habilidades que herdou do avô, diz. As suas pandeiretas ultrapassam fronteiras e não só as ibéricas. "Acabo de enviar uma para o Canadá", diz.

Fá-las com pele de ovelha ou de cabra e junta depois grão-de-bico, sinos ou linhas. São redondas, triangulares, quadradas, octogonais... e de cores.

Luis não fica atrás e surpreende com uma original contribuição: a colher. Uma homenagem à cozinha, outro elemento fundamental da cultura popular.

Nas suas mãos, a colher simula o trote de um cavalo, emula os ritmos do flamenco e acompanha-o numa "jota".

Aurora não costuma ir a concertos, mas é parte da memória que alimenta o "Músicas da Raia". Aos 73 anos, salvou do esquecimento a cantiga das "Três Marras".

Quando Paulo a descobriu era a única mirandesa que se lembrava da letra desta velha canção, que fala de um namorico que passava os limites da antiga fronteira entre Portugal e Espanha - uma joia desta cultura de transmissão oral que se vai perdendo.

Aurora Ribas tinha um sonho: "Quando era pequena, pedi ao meu pai que me comprasse um acordeão. O meu sonho era cantar e dançar. Mas não o comprou. Não havia dinheiro".

Começou a trabalhar muito jovem, emigrou com o seu marido para França e no regresso, nos anos 1980, o casal abriu um pequeno bar em Povoa (Pruoba, em mirandês), uma aldeia próxima de Miranda.

Na sua velhice conseguiu cumprir o seu sonho, pelo menos em parte: canta no coro da igreja e atreve-se a uma atuação de vez em quando na emissora local. "É uma rádio que se ouve em todos lugares", especifica orgulhoso Aníbal, o seu marido.

Em Bermillo de Sayago já é noite cerrada e Paulo e Luis começam a despedir-se: "Vamos tocar a última". O público levanta-se e pede mais. E eles dão mais. Um par de temas para fechar: um "pasodoble" e umas "jotas" que põem os mais atrevidos a dançar.

Antes de se ir embora todos querem um autógrafo e uma foto com os artistas. José, um pastor de 75 anos, aproxima-se do palco, agarra uma pequena flauta de cana esculpida por Paulo durante o concerto e lança-se: "É inútil deixar de gostar de ti, não me queiras matar o coração", entoa. Não é uma típica cantiga mirandesa, mas "tocava-a muito quando era jovem, no monte", confessa.

María também quer despedir-se dos músicos: "Felicidades e obrigado. Que possam continuar muitos anos a fazer isto. E que voltem aqui".

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