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"Não sei o que é isso de se comportar como uma senhora, nem quero saber"

Ana Bacalhau é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.

"Não sei o que é isso de se comportar como uma senhora, nem quero saber"
Notícias ao Minuto

09:40 - 08/03/19 por Melissa Lopes

Cultura Ana Bacalhau

'Canções de Roda, Lenga Lengas e Outras que Tais', que reúne Ana Bacalhau, Jorge Benvinda, Vitorino e Sérgio Godinho, com ilustrações de Claudia Guerreiro, lançado esta sexta-feira, dia 8 de março, foi o mote para esta entrevista. Neste disco, que é também um livro de histórias, constam verdadeiros clássicos que atravessam gerações.

'Ah ah ah, minha machadinha'; 'As pombinhas da Catrina'; 'A saia da Carolina' são algumas das pérolas do 'Canções de Roda', aqui reinventadas com novos arranjos. A ideia é "criar boas memórias" nos mais pequenos, passando-lhe o testemunho do cancioneiro. 

Gravar um disco de temas infantis é para Ana Bacalhau um "ponto de passagem" que faz sentido. Nesta entrevista, a artista vai mais longe e fala de si, das suas memórias de infância, das boas e das más.

Vítima de bullying na infância, foi a porta da criatividade que a fez virar-se para a expressão artística - através da escrita e, mais tarde, da música - , uma forma de escape ao seu mundo "menos simpático". Defende a liberdade total de ser e de estar. Para si e para os outros. Por isso, sentiu a necessidade de despir a pele da Deolinda e começar a "cantar-se a si" própria. Ana Bacalhau está agora a trabalhar no segundo disco a solo, depois de (se) ter lançado em 'Nome Próprio'. Apostas para a Eurovisão? "Conan Osíris vai trazer o caneco", atira, confiante. 

Como é que surgiu o ‘Canções de Roda Lenga Lengas e Outras que Tais’?

Surgiu de um convite do António Miguel, que tinha esta ideia na cabeça de juntar esta pandilha e de fazer arranjos com instrumentos mesmo a sério, que hoje em dia muitos dos discos de música que se fazem para crianças é tudo feito com computador e depois acrescentadas as vozes.

Um pouco 'fake'. 

Ou 'fake' ou pelo menos não tocado por humanos, digamos assim. E a ideia era isto tudo ser feito à antiga e com canções do cancioneiro, mas que pudessem ter uma vida nova, não só para a geração dos mais pequeninos como para a nossa, para as outras gerações conviverem com estas canções. O convite partiu dele [António Miguel] e eu achei lindamente, não só pela ideia, como pelas pessoas e juntei-me.

Foi em 2016 que fizemos os primeiros ensaios, ainda não tendo em vista o disco, mas tendo em vista um concerto que íamos fazer no Sol da Caparica, no dia das crianças.

Foi como que encubadora deste disco.

Foi. Exatamente.

Este trabalho é um regresso à infância da Ana Bacalhau? Ouvia estas canções?

É. Ouvia tudo. Conhecia todas as canções. (olha para o disco, e aponta). Não conhecia o ‘Ó Menino Ó’. todas as outras são clássicos, cantava quando era miúda, claro. O ‘É Tão Bom’, pelo menos para a minha geração foi muito importante por causa da ‘Árvore dos Estapafúrdios’. Nesse sentido, foi fácil porque já conhecia aquilo tudo e obviamente que me agitou aqui memórias da minha infância.

Boas memórias?

Boas. Por outro lado, tendo uma miúda pequena com quase dois anos, também é uma forma de eu lhe passar as canções e de lhe criar memórias tal como eu tive.

Notícias ao MinutoCanções de Roda é um disco, mas também um livro de histórias infantis© Universal

Numa época em que as crianças já nascem com os tablets e os telemóveis nas mãos….

É. É incrível, a minha só ouve música no YouTube, portanto, vê música. Pede as músicas, que não são infantis.

As da mãe?

Sim, ela adora, não é porque eu lhe pus, foi porque ouviu e gostou. Mas não ouve só a mãe, ouve o Zambujo, a Ana Moura…

Isto é interessante porque é um livro também. Há aqui muitas vertentes da nossa identidade cultural que podem ser exploradas pelos mais pequeninos e pelos mais graúdos

Música portuguesa, portanto.

Ouve muita música portuguesa, muito mais do que música estrangeira, vai ter tempo para isso. Vai ouvindo os Beatles, vou-lhe mostrando a velha guarda para ela ter as bases. Tem tempo depois para ouvir tudo o que está a ser feito agora. Isto também é uma forma de esta geração não só de ter contacto com esse cancioneiro nosso sonoro mas também visual. Isto é interessante porque é um livro também. Há aqui muitas vertentes da nossa identidade cultural que podem ser exploradas pelos mais pequeninos e pelos mais graúdos. E depois as histórias. O António Miguel pediu-nos para escrevermos uma história infantil.

E a Ana escreveu a 'histórias da vó mil’. É biográfica a história?

Não é, mas tem alguns elementos de lembranças minhas que depois abastardei ou mudei para a história. Foi um desafio muito importante para mim. Ainda agora estou a começar a escrever canções, quanto mais histórias [risos]. Foi um exercício bom e gostei da experiência. Portanto, os mais pequeninos têm aqui um objeto que é muito completo, tem música, tem imagem e tem histórias.

É uma forma de reaproximar gerações que se distanciaram pela vida apressada dos nossos dias?

Espero que sim, é essa a ideia. Lá está, está aqui um objeto que pode interessar aos avós, filhos e netos.

Que significado tem para a Ana Bacalhau este disco?

Há qualquer coisa nisto dos discos infantis. Quase todos os artistas têm ou participaram em alguma coisa feita para os mais pequenos.

Esse efeito que a música tem nas crianças é muito poderoso e é muito primitivo, no sentido em que nós em adultos temos muitos filtros, quando ouvimos música não deixamos, às vezes, que ela atue em nós e no nosso corpo É como que um ponto de passagem?

É um ponto de passagem. Não só porque desde pequenos fomos formados pela música que ouvíamos e como adultos e como músicos queremos poder estar presentes dessa forma na vida de uma criança que começa a ouvir música, que começa a estabelecer os seus gostos e, portanto, podermos contribuir, de alguma forma, para ajudar a formar o seu gosto.

Acho que tem a ver com isso, com o lembrarmo-nos de quando éramos pequeninos e agora querermos, em adultos, ou voltar aí ou contribuir para dar alegria. Eu lembro-me da sensação que provocava em mim e vejo na minha filha. É viciada em música. A primeira coisa que me pede quando acorda é para ‘çar’ (dançar). Esse efeito que a música tem nas crianças é muito poderoso e é muito primitivo, no sentido em que nós em adultos temos muitos filtros, quando ouvimos música não deixamos, às vezes, que ela atue em nós e no nosso corpo. Fica um bocadinho cerebral e temos vergonha daquilo que as pessoas em nosso redor vão pensar. E eles não têm nada disso, são o público mesmo completamente…

Espontâneo.

Espontâneo e honesto. Vemos logo se estão a gostar ou não. E isso para um músico é essencial. Ver a reação da música logo ali diretamente. Por isso é que se calhar muitos de nós passamos por isto. E para mim era importante passar aqui precisamente por essas razões e também porque sou mãe de uma menina e quero ter algo para lhe dar, especificamente para crianças.

Notícias ao MinutoCanções de Roda junta Ana Bacalhau, jorge Benvinda, Vitorino e Sérgio Godinho© Universal

Na 'histórias da vó mil’, a Ana conta que “tudo fica bem depois de uma boa história”. É isso?

Essa parte é autobiográfica no sentido em que, quando era miúda, antes de descobrir que podia fazer música, o meu escape era ler e escrever.

Já contava histórias, então!

À minha medida, já contava. Recebi dos meus pais uma máquina de escrever, teria uns 8, 9 anos. Foi quando comecei a escrever histórias. Era o meu escape, a minha primeira forma de expressão. Eram histórias muito infantis, claro, mas criavam o meu mundo. E isso dava-me bem-estar, fazia-me feliz. Por isso é que digo, tudo fica melhor depois de uma história.

Confessou no ‘Alta Definição’ que sofreu bullying na escola. Numa altura em que nem sequer existia essa palavra.

Sim. Não havia essa expressão, era só “os meninos estão a gozar comigo”.

Vendo bem, hoje sabe-se que quase meio mundo sofreu bullying.

É verdade, é uma coisa que depois descobri. Imensa gente sofreu e aqueles que não dizem que sofreram se calhar fizeram sofrer. E há mesmo muita gente no meio artístico que foi vítima, também me apercebi disso depois de conversas. Muitos de nós (artistas) fomos gozados, e se calhar daí este contrassenso - nós expomo-nos muito, expomo-nos ao ridículo, estamos outra vez no recreio para podermos ser gozados. Mas é, se calhar, uma tentativa de ultrapassarmos esse recreio, de vencermos esse medo do recreio e esses momentos.

O bullying foi importante porque me marcou, pela negativa, obviamente. Mas acho que ajudou na criatividade (...), através da escrita a criar outros mundos paralelos ao meu mundo que não era tão simpáticoE de que forma é que o bullying moldou a Ana Bacalhau que está aqui a minha frente?

O bullying foi importante porque me marcou, pela negativa, obviamente. Mas acho que ajudou na criatividade. Todos os seres humanos nascem criativos, são seres criativos. Eu não fechei essa porta da criatividade porque era essa porta que me ajudava a lidar com o bullying, através da escrita a criar outros mundos paralelos ao meu mundo que não era tão simpático. Era um escape, a expressão artística foi muito importante para lidar com as coisas menos boas. Essa parte criativa foi resultado um bocadinho disso que eu sofri. Por isso trouxe coisas boas.

Foi essa a parte boa do bullying, existindo uma parte boa?

Sim. Pelo menos de uma coisa má consegui retirar uma coisa boa que é o meu modo de vida, que é a expressão artística, através da música no meu caso.

Quando se amachuca uma folha de papel, por mais que tentemos alisar, ficam lá sempre os vincos. Eu tenho tentado alisar a folha de papel mas obviamente que se notam as marcas, há cicatrizesMas guarda mágoas desse tempo?

Guardo, claro. Quando se amachuca uma folha de papel, por mais que tentemos alisar, ficam lá sempre os vincos. Eu tenho tentado alisar a folha de papel mas obviamente que se notam as marcas, há cicatrizes. O que eu tento é que isso tenha pouca influência negativa na minha vida. Estou sempre a tentar transformar essas mágoas em coisas que tenham resultados positivos para mim, nem que seja cantar essas mágoas. A minha avó dizia que “cantar é rezar duas vezes”, no sentido em que cantar liberta muito. A escrita é uma coisa muito para dentro, muito cismada, e as coisas ficam cá dentro na mesma, não se partilham. A música é uma arte social e de partilha, portanto eu o meu fardo cuspo-o para fora, partilho-o e fico mais leve. Por isso é que, se calhar, a música me encantou mais.

Resultava melhor para… ?

Para afagar as mágoas.

Em que momento é que se dá esse click, que era a música o caminho e o destino?

Foi quando fui aprender a tocar guitarra na junta de freguesia de Benfica. Na altura, em 90/91, era super fã dos Gun and Roses e queria ser tipo o Slash feminino. Nunca seria, não tenho assim grande jeito para aquilo, só para tocar acordes e pouco mais. Comecei a tocar os acordes das músicas que se ouviam na altura e comecei a cantar por cima. E aí é que eu vi que tinha um instrumento, que era a voz, e que tinha aqui muito por onde explorar. Foi mais ou menos aos 15 anos que descobri a minha voz e aí, sim, percebi que era isso que queria fazer.

Houve vezes em que pensei que não ia conseguir ser só cantora e que tinha de ter outra profissão. Foram as únicas dúvidas que tiveE nunca mais a largou?

Nunca mais larguei. Houve momentos em que eu achei que, de facto, nunca ia conseguir ser cantora profissional e que ia ser sempre uma coisa secundária – secundária não, a arte é sempre primária e ocupa todos os lugares principais da nossa vida – em termos de liberdade financeira e de poder viver da música. Houve vezes em que pensei que não ia conseguir ser só cantora e que tinha de ter outra profissão. Foram as únicas dúvidas que tive, mas nunca deixei nem nunca deixaria de cantar se não tivesse conseguido viver só da música.

Disse também, nessa entrevista: “Por favor, não tentem ser donos de mim, sou dona do meu nariz”

Sim, isso é tirar-me a liberdade.

Senti-me muito presa e não gostei dessa sensação. Por isso, agora em adulta é mesmo imprescindível que não me tentem cortar as asas nem as vou cortar à minha filha

Sempre foi assim, dona do seu nariz mesmo em criança nos momentos maus?

Sim, porque eu aprendi da pior maneira que uma pessoa se tem algumas características que as diferenciam é um alvo. Na adolescência depois descobri que ser-se diferente dos outros não é mau, é bom, perfeito, ótimo, joga a nosso favor. E precisamente por isso dou muito importância ao facto de as pessoas serem quem são, ao invés de serem moldadas pelos outros. E também porque os meus pais não eram muito permissivos. Nunca tive muita liberdade de movimento, não podia sair à noite, não podia ir a concertos, era muito raro. Senti-me muito presa e não gostei dessa sensação. Por isso, agora em adulta é mesmo imprescindível que não me tentem cortar as asas nem as vou cortar à minha filha. É óbvio que vou impor limites.

Só a vai deixar sair à noite aos 18?

Nunca seria capaz de fazer isso. Os limites que que tenho de lhe impor são limites éticos para ela saber comportar-se quando sair. É nisso que acredito. A liberdade de sermos quem somos é muito importante para mim e se tentarem cortar isso não vai dar certo comigo.

Já me foi dito várias vezes isso, para me comportar como uma senhora e eu odeio isso de morte. Não foi pacífico, dei luta, sou sempre luta

Já sentiu que lhe tentaram cortar essa liberdade?

Senti. Em primeiro lugar, sempre fui uma pessoa que fala alto, um bocado exuberante nos gestos e, como mulher, muitas vezes isso não é bem visto. As mulheres devem ser mais calmas, mais discretas. Já me foi dito várias vezes isso, para me comportar como uma senhora e eu odeio isso de morte. Não foi pacífico, dei luta, sou sempre luta [gargalhada].

Em que situações é que isso aconteceu?

Por exemplo em miúda quando os meus pais me diziam como me comportar. “Porque é que eu não posso comportar-me assim? Não estou a fazer mal a ninguém. Sou assim”. Também amigos. Tinha um amigo que dizia que me tinha de comportar como uma senhora. E eu achava aquilo tudo uma estupidez. Não sei o que é que é isso de se comportar como uma senhora, nem quero saber. Esses estereótipos de género que a gente sabe.

Comecei a perceber que me começaram a querer encaixar naquele molde e eu não sou aquela boneca, ela é uma entidade e eu sou outra

E no meio profissional?

Profissionalmente, comecei a tentar sair da boneca. Eu era a Deolinda. Num momento de apresentação da banda foi importante eu vestir mesmo a pele daquela boneca. Se não era complicado as pessoas terem uma banda chamada Deolinda, com uma boneca, e não terem essa figura em palco. Não faria sentido. Mas depois comecei a perceber que me começaram a querer encaixar naquele molde e eu não sou aquela boneca, ela é uma entidade e eu sou outra. E aí comecei a tentar libertar-me porque estavam a querer que eu fosse uma coisa que eu não era, mais pequena e diferente daquilo que eu sou. Comecei a fugir desse grande estereótipo onde me queriam colocar e ainda hoje estou um bocadinho assim.

Mas, o que queriam? Que a Ana fosse Deolinda também no palco e fora dele?

Sim, que andasse com as saias redondas, sempre com aquele espírito e que cantasse sempre dentro daquele registo. Cantei as músicas dos Deolinda sempre convicta do que estava a cantar, mas quero cantar outras coisas, uma pessoa não tem só um lado, uma faceta. E eu comecei a cantar Grunge, gosto muito de Blues Jazz, Folk americano, a música anglo-saxónica foi mesmo de formação para mim, formou-me. Depois fui buscar as bases, ouvia por casa fado, o Zeca. Depois fui mesmo procurar ativamente tudo isso, foi o que vim a fazer com os Deolinda, mas eu adoro cantar Blues, adoro cantar Folk... E quero poder cantar isso de vez em quando.

Cantar o que quiser quando lhe apetecer.

Tal e qual. Não queria só cantar o registo Deolinda, queria cantar no meu registo que são várias coisas. Percebo que há pessoas que resistem a isso porque se afeiçoaram à imagem que tinham da Deolinda, mas as coisas evoluem, eu também, e a minha música reflete essa evolução.

Foi dessa necessidade que surgiu o disco a solo com 'Nome Próprio’?

Foi. Foi da necessidade de cantar em outros registos e de me cantar a mim. Comecei a sentir falta de me cantar a mim.

E já conseguiu descobrir quem é que é em nome próprio?

Não, na verdade estou ainda à procura – agora estou a pensar no segundo disco - e espero continuar a procurar durante muito tempo. Lá está, uma pessoa não é estática, vai evoluindo, vai acrescentando coisas ao seu universo e quer que a música reflita isso. É nesse ponto em que estou agora.

Não há uma meta?

Não. Eu espero nunca cruzar essa meta do “ok, já cheguei!”. Assim não há criação. Se já cheguei, para onde é que eu vou? Não tenho mais nenhum sítio para onde ir. Isso é estagnar. Estagnar é a morte do artista. Espero nunca lá chegar. Ou, se chegar, chegar lá muito velhinha [gargalhada]. Com noventa anos.

Consta que a Ana é literalmente alérgica a conchas. Vem da exigência de sentir livre para ser e estar?

Pois sou. Acho que vem. O meu próprio corpo começou a ficar alérgico a que me metam em caixas. Sou mesmo alérgica, de verdade, não posso comer tudo o que seja casca rija, tipo caranguejo, amêijoas, e etc. Acho que é isso, quando me tentam fechar numa caixa apertada e dura, toda eu me recuso.

Acho que há algumas coisas que estão traçadas a lápis e nós temos uma borracha em nós e podemos ir apagar esses traços a lápis e reescrever a caneta. Acho que temos esse poder e essa é a maior força de todas O que é que tem de ser que tem muita força?

Se se acreditar no destino, acho que o destino tem muita força, mas a nossa força de vontade também tem muita força. Acho que a nossa força de vontade tem mais força que o destino (gargalhada). Acho que há algumas coisas que estão traçadas a lápis e nós temos uma borracha em nós e podemos ir apagar esses traços a lápis e reescrever a caneta. Acho que temos esse poder e essa é a maior força de todas.

A Maria da Luz é agora a luz que a guia? Também na criação artística?

A Luz é a luz que me guia, é. Uma pessoa quando tem um filho tem instintivamente tem esta responsabilidade para com outra pessoa que depende totalmente de si e portanto todas as decisões que tomo, mesmo podendo não parecer que são em função dela, têm de ser. E aliás, decisões que eu tomo para o meu bem-estar é o meu bem-estar no sentido em que preciso de estar bem para a acudir a ela. É tudo diferente, a forma como nós olhamos a vida, a nós próprios e o outro.

E a nível profissional, o que é que veio mudar?

Não pode mudar muito porque as regras do jogo da minha profissão são estas. Estou muitas vezes fora a tocar, tenho horários diferentes das pessoas que têm profissões mais certinhas e rotineiras, há muitos fins de semana em que vou estar fora, se calhar não vou poder ir a uma ou outra festa da escola. Estas são as regras do jogo tramadas para ela. Quando estamos fora estamos fora, mas quando estamos cá, estamos todo o dia para ela. O que muda, para a mãe, é o sentimento de divisão, uma pessoa nunca está a 100%. É o lado da criação. Uma pessoa está sempre a ver, a ouvir, a sentir.

Ela às vezes até inspira. Quando a Luz tiver idade para vir aos concertos, aí os dois mundos já se vão misturar. Para já, são dois mundos distintos e muito absorventes. É esse sentimento de constante divisão que mudou.

Acho que [a maternidade] se reflete naturalmente na minha forma de cantar, esse amadurecimento, e é por aí que eu gosto de ir. Que as coisas se reflitam na minha música sem ser de forma impositivaFalou do próximo disco que aí vem. Já tem alguma influência do lado materno? Há artistas que sentem essa necessidade de refletir esse lado nos discos e nas canções…

Por acaso, nunca senti necessidade. Há mulheres que quando são mães depois refletem isso nos discos e cantam sobre isso. Para mim, na minha expressão até agora, não achei importante falar muito sobre isso. Posso ter uma ou outra canção, mas um disco inteiro não. Acho que [a maternidade] se reflete naturalmente na minha forma de cantar, esse amadurecimento, essa forma diferente de ver a vida e é por aí que eu gosto de ir. Que as coisas se reflitam na minha música sem ser de forma impositiva. É por osmose. Isto que eu estou a sentir infiltra-se em mim, na minha voz, na minha alma e no meu corpo e depois quando vou interpretar uma canção, essas emoções vão lá estar.

Quando gravei o primeiro disco já estava grávida. De certa forma, a forma como canto e a forma de sentir já está ligada a ela. Por isso não sinto a necessidade de fazer um disco chamado Luz onde falo das experiências da maternidade. Prefiro este disco de crianças ('Canções e Roda'). Porque acho que é o que faz sentido e também para não a expor demasiado. Não sei o que é que ela acha disto tudo, da vida que a mãe escolheu e não quero escolher a vida para a minha filha, quero que ela escolha, e por isso também a quero proteger um bocadinho. Ela depois decidirá se quer estar presente na vida pública da mãe ou não.

E já há algum indício de que ela venha a ser artista?

Artista? [gargalhada]. Artistas são todas as crianças. São mesmo. A Luz gosta muito de música, gosta muito de dançar. Tem uma postura interessante e engraçada perante o mundo e os outros, mas não sei o que é que vai sair dali. Já vai tentando cantar algumas coisas. Mas ainda é cedo para perceber.

Pode ser que um dia partilhem palco.

Bom, se for essa a escolha dela, eu apoio a 100%. Se quiser ir para contabilista, também a apoio, na boa. É o que ela quiser mesmo. Liberdade total de ser.

Não vai haver conchas?

Para a Luz não. Quero criar ali um código de ética muito forte e obviamente que a minha visão do mundo vai passar um bocadinho para ela, mas não quero impor. Quero que perceba quais são os meus valores e que os ache suficientemente bons para serem os valores dela. Os melhores valores eu saquei dos meus pais e é isso que quero fazer com ela.

Tenho de ver como é que a minha voz vai envelhecer, se bem ou mal. Para já, está fresca. Se envelhecer bem, espero ainda estar em palco e ter ainda coisas para dizer e a quem as dizer

Onde é que se imagina daqui a 20/30 anos ?

Terei à volta de 60, 70… espero que ainda nos palcos. Tenho de ver como é que a minha voz vai envelhecer, se bem ou mal. Para já, está fresca. Se envelhecer bem, espero ainda estar em palco e ter ainda coisas para dizer e a quem as dizer (sem público uma pessoa fala sozinha). Também gostava de poder partilhar o saber que fui acumulando ao longo dos anos com outras pessoas mais novas, artistas que estão a criar-se, nem tanto a nível de voz – porque acho que não tenho capacidade técnica para isso – mas gostava de dar aulas de interpretação, porque isso aí eu tenho, estudei literatura. Sei olhar para um texto e sei do que precisa para ser interpretado. E emocionalmente também sei.

A par disso, gostava de dar aulas de performance. Tenho bastantes ferramentas performativas que gostava de passar. Não quero formar pessoas que estão em palco como eu, de todo. Não quero criar mini  Anas Bacalhaus. Quero é que as pessoas trabalhem o que querem e o que são para uma coisa muito específica que é o palco. Estar no palco e estar na vida é, ao mesmo tempo, natural e difícil de conseguir. Para parecer e ser natural temos de trabalhar muito.

No panorama nacional, para não ir muito longe, falta esse saber estar natural em palco?

Acho que felizmente vivemos uma geração que tem cada vez menos dogmas de como estar. Lembro-me de colegas meus dizerem, aqui há muitos anos, que lhes diziam: “Tens de falar mais, tens de estar assim e assado”. Todos tinham de fazer a mesma coisa. Acho isso terrível .

E algumas pessoas dizem-me: “gostava tanto de ser como tu, sou mais metida comigo mesma, não falo tanto”. E eu digo: “isso é ótimo”. A performance não tem de ser o que eu faço. A performance é mesmo pegar naquilo que nós somos, nas nossas características que nos tornam únicos e saber transportar isso para o palco de forma a que as pessoas vejam essa luzinha em nós, e que isso se torne uma força e que as pessoas não consigam desgrudar o olhar de nós. Umas pessoas têm a sua força no gesto, como eu, e outras têm no seu centro e podem estar paradas o concerto inteiro e não andar para lado nenhum, que aquilo que cantam e a forma como o fazem, e o peso da respiração, isso já é performance e agarra as pessoas.

Acho que às vezes falta é as pessoas terem fé em si mesmas. Às vezes o que vejo em palco a nível de falha é a pessoa não estar completamente convencida e ter medo – no palco não se pode mostrar medo. Quando se está a pensar no palco, nota-se logo. O palco é para desligar. Pensar é trabalho que tem de se fazer antes. É como num teste, não se vai estar a estudar no teste. O palco é para acontecer.

Já que falamos em performance, o assunto incontornável. O que achou da performance de Conan Osíris, com que nos vai representar em Israel?

Adoro.

Apesar de ter vencido, foi alvo de muitas críticas nas redes sociais.

Lá está, as pessoas não gostam que o outro seja diferente. Atacam o que é diferente. Quando uma pessoa se destaca pela diferença é um alvo a abater e logo aí ganha a minha simpatia absoluta. É muito difícil ser-se diferente, quem tem a coragem para isso. E depois, enquanto expressão artística, tem valor. Goste-se ou não se goste. É expressão artística, não está vazio, tem lá arte. Quando muita gente diz: “Para isso também faço”. Então façam! E depois conversamos. Vamos ver se é convincente.

A expressão artística do Conan é convincente porque tem arte lá. O Tiago pensou, foi buscar a si os elementos para construir aquilo, foi pensado, foi trabalhado e passa uma mensagem. Pode não ser na forma exata como as pessoas gostavam que fosse passada. Acham que falar de telemóveis é um assunto corriqueiro e não percebem que há algo mais do que isso.

Vou sacar do trunfo da literatura. William Carlos Williams fez um poema sobre ameixas. Não sei de cor mas é tipo: “Estão ameixas no frigorífico, estão frescas, estão ótimas”. As pessoas ficaram chocadas, “isto não é poesia”.

Isso também eu escrevo”

Tivessem escrito. Hoje em dia já é poesia e é estudado. O tempo é que vai dizer, mas a minha intuição diz-me que há arte ali, falar de um telemóvel para falar de outras coisas mais profundas. É preciso é demorar mais do que dois segundos – e estamos num mundo em que não se demora mais do que dois segundos a ouvir uma música. Causa aquela estranheza mas se lhe dedicarmos um bocadinho de tempo, depois vai-se entranhar. Já conhecia antes o trabalho do Conan, não me surpreendeu no sentido em que já conheço outras letras e outras canções, e acho que há ali muita inteligência e arte.

Tenho a certeza de que o Conan Osíris vai trazer o caneco da Eurovisão

E ele pode ser o vencedor?

E tenho a certeza de que vai trazer o caneco da Eurovisão. Vai trazer um grande resultado. Não quer dizer que outras canções a concurso (no Festival da Canção) não pudessem trazer bons resultados. Discordo das opiniões em contrário que dizem que é uma vergonha para Portugal ir lá o Conan. De todo. Acho que as pessoas não conhecem o que é a Eurovisão hoje em dia. Aquilo é um freak show.

E os ouvidos estão muito agarrados ao fenómeno Salvador?

Lá está, mas o Salvador também era diferente. E a diferença ganhou. Por isso é que acho que a diferença do Conan – sendo que na Eurovisão os artistas têm de se destacar de alguma forma – e ele faz isso sem esforço, aquilo não é forçado. Enquanto a canção que ganhou o ano passado, de Israel, era completamente forçada e feita, no caso do Conan não é nada forçado, é dele. Tem de se dar seriedade àquilo que é sério e não se pode dizer logo que aquilo é parvoíce e bota para o lado. Não concordo nada com isso.

Há algo que possa desvendar do disco que está a ser pensado?

Não posso desvendar mas há coisas a acontecer.

Já há uma data pensada?

Para sair, não. Mas vai sair uma canção que eu fiz, também é uma novidade, nunca me assumi muito como autora. Vai sair uma canção que fiz, música e letra, que não sei se vai ser do disco ou não porque ainda não sei se vai fazer sentido, é uma sonoridade um bocadinho diferente. Pertence ao meu percurso e a esta coisa de andar à procura de mim mesma e em breve sairá.

Quão breve?

Um mês…

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